Cabo Espichel : Conseguimos salvar o fim do mundo?
ALEXANDRA PRADO COELHO
O Santuário de Nossa Senhora do Cabo já foi um dos
maiores locais de peregrinação do país, palco de festas magníficas com teatro,
ópera e touradas. Décadas de abandono trouxeram a decadência. Um impasse
político tem impedido uma solução. O fotógrafo Carlos Sargedas, que luta há
muito para salvar este cabo “nas terras do fim”, dedicou os últimos quatro anos
a fazer um filme que será apresentado dia 24 em Sesimbra.
Não podemos imaginar o que terão pensado os primeiros homens que chegaram
ao cabo Espichel. Aos seus olhos, surgia um planalto a estender-se em direcção
ao céu e a cair despenhando-se sobre o mar. O mundo acabaria ali?
O Espichel é um cabo finisterra. No livro Nossa Senhora do Cabo —
Um Culto nas Terras do Fim, Heitor Baptista Pato escreve que a povoação da
Azóia parece ali “um dos últimos sítios habitados do mundo, e percebe-se bem
que um antigo documento de 1366 afirme que aquelas terras do ermo, onde ainda
perpassam as vozes de deuses velhos e roucos, ‘jazem em huu dos cabos do mundo
e fora de todo o caminho’”.
Mas, mesmo “fora de todo o caminho”, atraiu os homens, que sentiram ali, de
diferentes formas, a presença do sagrado. Os acidentes naturais, geográficos e
geológicos foram sempre, diz ainda Heitor Pato, locais onde “residiam e se
manifestavam divindades ou forças transcendentes de que nem sempre se conhecia
o nome, embora não se duvidasse do seu poder: como disse o rei Evandro quando
conduziu Eneias à rocha Tarpeia e ao Capitólio, aqui habitam deuses, mas não
sabemos que deuses são…”.
Por aqui passaram dinossauros, devotos muçulmanos, aqui nasceram mitos,
apareceram imagens misteriosas, os homens pasmaram perante pegadas sem
explicação. Houve quem acreditasse que aqui ficava uma das portas da Atlântida.
Vieram crentes seguindo Nossa Senhora e com as próprias mãos ergueram uma
igreja, vieram depois reis e cantores de ópera, fizeram-se procissões
riquíssimas, houve luxo e fausto e festa — até tudo cair numa desolação de
fazer dó, como se os homens tivessem decidido esquecer o cabo para sempre.
Ainda aqui viveram retornados das ex-colónias, mas com o tempo o património foi
caindo. Depois todos se foram embora, e o cabo Espichel parecia finalmente
mergulhado no silêncio.
Mas, a pouco e pouco, os homens voltaram. Como se não pudessem evitar.
Vieram em procissões, e vieram em motos (há um encontro anual de motards).
Atraídos pelo santuário e pelos braços agora emparedados dos antigos albergues para
peregrinos, pelas ruínas da Casa da Ópera, pela pequena capela junto ao mar.
Voltaram, enfeitiçados, a um cabo “fora de todo o caminho”.
Vieram pela natureza — a visível, no vento, no mar, na terra, e no céu, e
também aquela que não é imediatamente visível, a vegetação em alguns casos
única, os segredos escondidos nas grutas de difícil acesso, a imensa vida no
fundo do mar, onde os peixes nadam entre restos de navios afundados. E pelas
muitas histórias que o cabo guarda.
DANIEL ROCHA
O fotógrafo Carlos Sargedas apaixonou-se pelo cabo Espichel há muitos anos,
quando foi viver para Sesimbra. Primeiro chegou por terra, depois quis vê-lo a
partir do ar. Durante muitos anos fotografou-o de todos os ângulos. E cada vez
se conformava menos com o destino a que parecia condenado. Os últimos quatro
anos, Carlos passou-os a filmar pendurado em rochas, de fato de mergulhador no
fundo do mar, entrando em sítios onde nunca tinha imaginado, falando com toda a
gente que lhe pudesse contar mais uma história.
O filme Cabo Espichel — Em Terras de Um Mundo Perdido, com
música composta por Miguel Valadares, vai ser apresentado no dia 24 em
Sesimbra, e será distribuído por instituições que possam ajudar a divulgá-lo
publicamente, juntamente com um livro reunindo dezenas de depoimentos de
especialistas.
Cabo Espichel
Para contar esta história, Sargedas reuniu desde geólogos como Jacques Rey
da Universidade de Toulouse, a directores de museus como Silvana Bessone, dos
Coches, ou Miguel Magalhães Ramalho, do Museu Geológico, biólogos como Fernando
Catarino ou António Teixeira, arqueólogos como Luís Ferreira, historiadores,
padres, espeleólogos, investigadores, arquitectos. Comprou à BBC imagens de
dinossauros a andar na terra há milhões de anos, como andaram no cabo Espichel,
reconstituiu uma batalha naval em 3D e arranjou actores que ajudaram a
relembrar diferentes momentos da história.
“O que eu queria era mostrar às pessoas aquilo que elas não conhecem”,
conta, numa pausa do trabalho de tratamento de som do filme, no MVStudios, em
Lisboa. “A minha ideia era, se vamos mergulhar, então vamos mergulhar o mais
fundo possível.” O objectivo, conta o fotógrafo que é também o fundador da
Arrábida Film Comission (organizadora do festival Finisterra e que tem como
missão divulgar internacionalmente a região como cenário ideal para filmagens),
é ter um filme que mostre o que acredita ser o extraordinário potencial do cabo
para grandes produções internacionais de cinema (já aqui foram feitas algumas)
e para outros projectos.
Carlos Sargedas fez um curso de mergulho
e, com a ajuda de espeleólogos, desceu às grutas, para filmar DR
As filmagens foram uma aventura. “Quando começámos a mergulhar, estive uma
hora para conseguir meter a cabeça debaixo de água. E quando entrei numa gruta
pensei: ‘Vou morrer aqui.’ Cheguei a ficar entalado pelo externo, 70 metros
abaixo da terra, na escuridão. Entrei em pânico, mas depois consegui ir
empurrando um bocadinho de cada vez, com a ponta dos pés… Mas em nenhum outro
sítio eu teria estas emoções todas. Há coisas que já ninguém me consegue
tirar.”
Meteu-se nisto porque acredita que pode ajudar o cabo Espichel e porque
sentiu que não podia ficar de braços cruzados a assistir à degradação daquele
espaço. A aventura, na realidade, começou antes do filme, em 2010, quando se
lançou a organizar as comemorações dos 600 anos do Santuário do Cabo Espichel
(se contarmos 1410 como a data em que terá sido encontrada a figura da Senhora
do Cabo).
“Na altura perguntei à câmara o que ia fazer. A câmara disse que não tinha dinheiro.
Achei aquilo tão nada que decidi fazer uma proposta. Desafiei uma série de
fotógrafos profissionais e amadores a fazer exposições de fotografia, desde a
subaquática à histórica. Enquanto as pessoas só virem a degradação e não
olharem para o resto, não há forma de se dar valor a isto”, explica. “Então, em
oito meses, organizei 16 conferências, uma a cada 15 dias. As pessoas achavam
que eu estava louco, que ninguém vinha à noite ao cabo, mas ainda me lembro, em
Setembro, uma noite, chovia torrencialmente, e aquilo encheu.”
"Enquanto as pessoas só virem a
degradação e não olharem para o resto, não há forma de se dar valor a isto”,
diz Carlos Sargedas
HENRIQUE NASCIMENTO
Mas a grande loucura foi o final. Carlos queria encerrar com estrondo e
pensou num concerto. “Pensei ‘vamos ter um palcozinho, convidar umas bandas e
fazer alguma coisa’. Perguntei no Facebook quem alinhava e apareceu-me uma
banda, depois outra — em 15 dias, tinha 16 bandas, a últimas das quais foram os
UHF. E então digo: ‘Eh pá, o que é que vou fazer?’ Não tinha um cêntimo, não
sabia organizar um concerto.”
Um amigo arranjou-lhe uns andaimes, o técnico da câmara desenhou o palco,
os UHF avisaram que mesmo de borla tinham de ter condições técnicas para tocar,
a polícia avisou que eram precisas licenças, a ASAE falou-lhe nas casas de
banho — e a cada dia o cenário parecia mais assustador. Apesar disso, Carlos
fez cartazes e anunciou a data: 11 de Setembro, para contrariar tudo de mau que
estava associado a esse dia.
Pediu ajuda aos milhares de amigos no Facebook. “Apareceram cinco. A certa
altura, eram cinco da manhã, na véspera do concerto, eu estava em cima do
palco, com um vento terrível, a 12 metros de altura, a tentar pôr uma lona e
entrei em hipotermia.” Valeu-lhe um amigo da Azóia que ouvira dizer “que estava
um maluco no cabo Espichel e resolveu vir ver”, trouxe material de espeleologia
e ajudou. “Fizemos um concerto memorável, juntámos quatro mil pessoas. Não fez
vento, não havia uma brisa. A partir daí, as pessoas acreditaram.” Carlos
chorava perdidamente, os UHF davam entrevistas a dizer que era preciso salvar o
cabo, os políticos faziam promessas. O concerto “foi um momento mágico”.
BRUNO SIMÕES
CASTANHEIRA
Não é de estranhar: a dimensão mágica está presente desde sempre no cabo
Espichel. Heitor Pato conta no seu livro que há até lendas que dizem que no dia
do nascimento de Jesus foram registados estranhos fenómenos solares sobre a
Península Ibérica e em particular sobre o cabo. Fala-se, em livros antigos,
também da presença de tritões (deuses marinhos) e de sereias — que, segundo
Pato, seriam na realidade lobos-marinhos.
Quanto aos dinossauros, não restam dúvidas de que uma ou mais manadas
passaram por ali há uns 150 milhões de anos. As pegadas, identificadas nos anos
de 1970, ficaram marcadas no que era então o fundo mole de uma zona de
pântanos, entretanto transformado em rocha que, fracturada, hoje pode ser vista
quase na vertical, em placas sobrepostas.
As rochas do cabo guardam também outras marcas, mais pequenas, que os
homens não sabiam como interpretar, e daí terá nascido a lenda da Pedra da Mua,
segundo a qual a Senhora do Cabo teria subido a arriba transportada por uma
mula que deixara na rocha as marcas das patas.
Mas o nome Mua, ou Mu, liga-se também, nas teses do investigador Manuel
Gandra, à lendária ilha-continente da Atlântida referida por Platão e
desaparecida no oceano Atlântico cerca de 10 mil anos antes de Cristo e que
seria igualmente associada ao nome Mu.
Ao longo dos tempos, foram encontrados nas grutas da região sinais de
cultos vários — entre as muitas descobertas, inclui-se a de uma tábua de
madeira com uma inscrição do Corão em árabe. Heitor Pato admite como provável
que tenha havido nas proximidades um santuário islâmico e considera “legítimo
supor-se já nessa época [da presença muçulmana em Portugal] a organização de
peregrinações religiosas à finisterra sagrada da Arrábida”.
É possível que precisamente por causa do domínio muçulmano, os cristãos
escondessem imagens sagradas. Mas, no caso da imagem da Senhora do Cabo, “quase
tudo é mito ou fonte de dúvida”, segundo Heitor Pato. A lenda mais comum é a
que conta que um velho de Alcabideche e uma velha da Caparica (unindo as duas
margens do Tejo) sonharam com o aparecimento da Virgem no cabo e para aí se
dirigiram, encontrando a imagem da Senhora em cima de um rochedo, o que levou
depois à edificação nesse local, à beira dos penhascos, da pequena Ermida da
Memória, onde a história dos dois velhos é contada em azulejos.
Costuma-se localizar a descoberta da imagem no ano de 1410 (há muitas teorias
e todas impossíveis de comprovar), mas só mais tarde, já no século XVI, foi
construída a igreja, de costas para o mar, da qual hoje nada resta. A actual
igreja, da autoria do arquitecto régio João Antunes, foi mandada edificar em
1701 por D. Pedro II. O culto foi crescendo e as romarias foram-se tornando
cada vez maiores e foram reforçadas pela ideia de que a Virgem garantia a
protecção contra a peste e outras epidemias.
Veio de seguida o “esplendor de Setecentos”, com a imagem transportada em
carros triunfais, espectáculos de teatro, fogo-de-artifício, corridas de
touros, óperas compostas para a ocasião (daí a Casa da Ópera, situada atrás da
ala norte da hospedaria) e a presença dos reis e da corte — D. José chegou a
oferecer à Senhora “duas coroas de ouro cravejadas de diamantes e um ramo de
jasmins e, em brilhantes, esmeraldas e rubis”.
A actual igreja foi mandada edificar em
1701 por D. Pedro II
Voltemos então à noite de 11 de Setembro de 2010, com Carlos Sargedas a
chorar porque conseguiu organizar um megaconcerto e porque parece que algo de
bom vai acontecer ao cabo Espichel. O que aconteceu depois disso? Nada.
O fotógrafo tem a teoria de que a decadência do cabo coincidiu com o fim da
monarquia. “O culto aqui estava muito ligado à monarquia, e então aparece
Fátima, que vem ‘destronar’ a Senhora do Cabo. A partir daí houve um abandono
total.” Em 1995, a Confraria de Nossa Senhora do Cabo, proprietária do
santuário, fez um acordo com o Estado para a recuperação do edificado (classificado
como imóvel de interesse público desde 1950): por doação, o Ministério das
Finanças ficou com a ala norte da hospedaria, com o objectivo de a transformar
em pousada enquanto a igreja e a ala sul continuam a pertencer à Confraria e os
terrenos à Câmara de Sesimbra. O Estado comprometeu-se por seu lado a fazer
obras de recuperação do conjunto.
Continuando as duas alas da hospedaria entaipadas e não tendo nenhum
projecto de aproveitamento turístico ou outro surgido no local, o que Carlos
Sargedas pergunta é porque é que o Estado não devolve a ala norte, dado que a
separação das duas alas não permite nenhum projecto com viabilidade. Recebido
por todos os grupos parlamentares, Carlos conseguiu apenas que os Verdes dessem
algum seguimento ao caso, com perguntas ao Ministério das Finanças, que remeteu
o caso para a Secretaria de Estado da Cultura, que alegou já terem sido feitas
obras, nomeadamente na igreja, mas sublinhou que o santuário “não integra a
lista de monumentos afecta à Direcção-Geral do Património Cultural, não sendo
atribuição nem responsabilidade deste serviço assegurar a gestão e valorização
deste conjunto ou executar as obras e intervenções de que necessite”.
A Câmara de Sesimbra, em resposta por email à Revista 2, fala numa “imensa
teia burocrática” que tem impedido que o problema se resolva e acusa o Estado
de nunca ter concretizado o compromisso que assumiu, situação que, diz, “é hoje
um dos maiores entraves à recuperação do monumento”.
A autarquia “começou por desempenhar um papel de mediador entre as partes
para tentar encontrar uma solução pela via institucional, mas uma vez que já se
verificou que dificilmente o Estado avançará para a recuperação, tem-se
empenhado em tomar posse da ala norte para, em colaboração com a Confraria,
detentora da ala sul, avançar para a recuperação do espaço, com recurso à
iniciativa privada ou por intermédio de fundos comunitários como tem acontecido
com outro património do concelho”.
Embora não tenha conhecimento de momento de algum investidor interessado, a
câmara argumenta que é precisamente para poder iniciar esses contactos que tem
tentado tomar posse da ala norte, mas uma proposta na qual “solicita poderes
para negociar com eventuais investidores”, feita em 2010 à Direcção-Geral do
Tesouro e das Finanças (DGTF), “nunca obteve resposta”.
fotógrafo acredita que o cabo pode
servir de cenário para todas as histórias possíveis
CARLOS
SARGEDAS
Como proprietária do terreno, vai em breve, com fundos do Proder, iniciar a
recuperação da Mãe d’Água. Quanto ao resto, ainda no início deste ano, em nova
reunião com a DGTF, “a autarquia voltou a insistir na necessidade de tomar
posse da ala norte, fazendo uma proposta de permutas de terrenos”, mas, apesar
de as propostas “terem sido bem recebidas pela tutela, “o facto é que se passaram
meses e não houve qualquer resposta”.
Impasse, portanto. Carlos continua a lutar contra a frustração de ver que
nada acontece. A sua grande aposta é o cinema. Fez o filme que esta semana vai
apresentar (com apoio do Proder, mas muito dinheiro seu investido)
precisamente para mostrar ao mundo como o cabo serve de cenário para todas as
histórias possíveis, “dos Piratas das Caraíbas ao Indiana Jones, passando pelo
Parque Jurássico”. Diz que os produtores que tem trazido a Portugal através da
Arrábida Film Comission ficam encantados e que o país tem uma luz única para
cinema. Só lamenta que não haja mais incentivos para atrair as grandes
produções.
Desafiou, entretanto, um escritor para fazer um argumento que pretende
vender a Hollywood, uma espécie de “Código da Vinci do cabo Espichel” e, “se
tivesse dinheiro ia tentar convencer o Tom Hanks” a participar. “Temos
tudo aqui, batalhas navais, vikings, evasões francesas, túmulos, segredos, uma
imagem de origem desconhecida, pegadas de dinossauros. Agora, o cinema faz o
resto.”
Carlos Sargedas esteve enregelado em cima de um palco às cinco da manhã
agarrado a uma lona, quando ninguém acreditava que ia conseguir montar um
espectáculo; esteve entalado numa gruta a pensar que ia morrer; gastou o
dinheiro que tinha e o que não tinha para fazer um filme sobre o cabo — e
promete continuar a filmá-lo porque ficaram histórias por contar. Já venceu
muitos medos. Não está a pensar desistir. O cabo onde certamente “habitam
deuses” enfeitiçou-o para sempre.