Quando Ary dos Santos
escreveu o poema, que viria a ser cantado por Carlos do Carmo, não imaginava
que alguém um dia o utilizaria para abrir um texto sobre Madonna. Mas, também,
quem sonhava que a rainha da pop se mudaria um dia para a cidade que mesmo não
sendo sempre maravilhosa, tem encantos mil. Alguns deles inspiraram
"Madame-X", disco que será apresentado no Coliseu de Lisboa em oito
datas, a primeira este domingo. Silêncio, que se vai continuar a fazer
história.
Antes de ser Madonna,
era Ciccone, estudante de piano e ballet e, mais tarde, de dança contemporânea
— foi a sua professora, Martha Graham, que a apelidou de "Madame X",
alcunha que repescaria para o título do seu último álbum. De uma das dançarinas
do artista disco francês Patrick Hernandez passou para os Breakfast Club, com o
namorado Dan Gilroy, onde cantava e tocava bateria e guitarra. O primeiro single surgiu
em 1982, pelas mãos da Sire: 'Everybody'.
Começava aqui uma
carreira de sucesso imenso e polémica a acompanhar. Se o primeiro álbum a solo,
homónimo (1983) deu ao mundo canções como "Borderlin" e
"Holiday", foi com "Like A Virgin" (1984) que Madonna se
começou a transformar, definitivamente, na "Rainha da Pop". Jovens de
todos os cantos começaram a copiar o seu estilo: calças até ao joelho, meias de
rede, crucifixos e cabelo pintado de louro. Críticos mais conservadores
acusavam-na de estar a promover o sexo antes do casamento e de estar a querer
"destruir as famílias".
"True Blue",
o seu álbum de maior sucesso comercial (mais de 25 milhões de cópias vendidas,
pela força de temas como "Papa Don't Preach" ou 'La Isla
Bonita"), surgiu em 1986. Começaram a surgir propostas para filmes, como
"Who's That Girl", que também deu nome a uma digressão de sucesso.
"Like a Prayer", em 1989, fez de Madonna pária no Vaticano: o vídeo,
onde a cantora sonhava fazer amor com santos, deixou furiosa a Igreja Católica.
Que não poderia prever o que se seguiria: "Erotica", álbum de 1982, e
"Sex", livro repleto de fotografias explícitas.
No final dos anos 90,
Madonna, que sempre esteve atenta às movimentações do underground musical,
editaria o álbum que é ainda hoje dos mais aclamados pela crítica: "Ray of
Light", manifesto de música de dança eletrónica construído com a ajuda do
produtor William Orbit, ao qual se seguiu "Music" e o mal amado
"American Life", onde o ativismo político não disfarçava a fraqueza
de algumas canções (o vídeo do tema-título, que mostrava George W. Bush como
alvo de uma granada arremesada pela própria Madonna, foi alvo de enormes
críticas e, eventualmente, substituído por um outro, mais suave).
"Confessions on a
Dance Floor", de 2005, recuperaria a música de dança, dos ABBA ao house
francês, e foi porventura o último grande "clássico" de Madonna -
"Hard Candy", "MDNA" e "Rebel Heart" passaram
praticamente despercebidos. Até que a cantora se reencontrou em Lisboa,
editando "Madame X", inspirada pelas músicas de Cabo Verde e pelo
fado bem português.
Madame-Lisboa
Em 2018, quando
completou 60 anos, Madonna disse numa entrevista à revista italiana Vogue que a
temporada recente em Lisboa a influenciou no processo criativo deste álbum.
"Conheci imensos
músicos maravilhosos e acabei por trabalhar com muitos deles no meu novo disco,
por isso, sim, Lisboa influenciou a música e o meu trabalho. Como não
influenciar? Não sei como é que eu teria passado este ano sem ter conhecido
toda esta cultura", disse a cantora norte-americana na entrevista.
E as declarações de
amor continuaram — mesmo tendo assumido ao The York Times ter sentido alguma
solidão numa Lisboa "medieval" que "parece um lugar onde o tempo
parou".
"Lisboa é onde o
meu disco nasceu. Encontrei lá a minha tribo e um mundo mágico de músicos
incríveis que reforçaram a minha crença de que as músicas à volta do mundo
estão todas ligadas e são a alma do universo", disse por ocasião do
anúncio do tão esperado álbum.
Em declarações à
revista Visão, numa entrevista conjunta com jornalistas internacionais em
Londres, Madonna voltou a assumir que "Madame X" é "um
reflexo" do seu tempo em Lisboa.
Aliás, "Killers
Who Are Partying", a primeira canção composta para o disco e onde se ouve
Madonna a arranhar um português tropical a cantar o verso 'o mundo é selvagem,
o caminho é solitário', teve origem numa guitarra portuguesa. “Comecei com a
guitarra portuguesa e também com a guitarra da morna, que ouvi numa living
room session em Lisboa. O disco foi construído à volta desse som em
Killers, a primeira canção escrita para o álbum”, conta.
“Espero que o meu
português seja bom”, atirou logo no início da entrevista coletiva, onde a
jornalista da Visão era a única portuguesa presente. O “professor”, fez questão
de esclarecer, foi o cantor Dino d’Santiago. "O Dino foi fundamental,
ajudou-me muito a criar este álbum", acrescentou.
Em julho do ano passado, em entrevista ao SAPO24,
o músico contou como tudo aconteceu. "Ela não ia gravar nada, estava a escrever um livro,
estava a preparar um filme, mas a partir do momento que conheceu esta realidade
[de Lisboa], começou a desenhar um disco. Desenhou um disco com base nestas
influências todas".
Mas, ao contrário do
que se previa, o cabo-verdiano de Quarteira não entrou no disco. Entra a carga
dramática do fado e a guitarra portuguesa de Gaspar Varela (bisneto de Celeste
Rodrigues). Num álbum cantado a três línguas (português, espanhol e inglês),
entra também a influência da música lusófona, de Cabo Verde a Guiné, passando
pelo Brasil — com uma versão de "Faz Gostoso", da cantora portuguesa
Blaya, num dueto com Anitta. Entra a morna, o crioulo e o batuque —
responsabilidade da Orquestra de Batukadeiras de Portugal, que andam em
digressão com Madonna.
"Quando as
Batukadeiras foram tocar para a Madonna, elas nem sabiam quem era ela. Sabiam
do fenómeno Madonna, só. E foram elas, de tudo o que lhe mostrei, dos sons de
Moçambique a Cabo Verde, quem mais a impressionou", recordou Dino
d'Santiago ao SAPO24.
A digressão conta
ainda com a trompetista portuguesa Jessica Pina, os percussionistas Carlos
Mil-Homens e Miroca Paris.
Madonna trocou, em
2017, Nova Iorque por Lisboa para que o seu filho David Banda treinasse futebol
nas camadas jovens do Benfica. “A última coisa que se esperaria de uma rapariga
controversa como eu era tornar-me numa soccer mom em Lisboa”,
disse numa entrevista à MTV. Mas foi o que aconteceu.
Na mudança para a
capital, começou por instalar-se no hotel Pestana Palace. Depois de
equacionar trocar Lisboa por Sintra ou pela Ericeira, a cantora mudou-se para o
Palácio do Ramalhete, na Rua das Janelas Verdes, no bairro de Santos. A nova localização fez correr tinta face à cedência de 15 lugares de
estacionamento, a troco de 720 euros mensais, por parte da Câmara
Municipal de Lisboa. A última e atual morada fica na zona de Santa Catarina,
próximo do miradouro do Adamastor. Além de David, vivem em
Portugal Mercy James (13 anos) e as gémeas Stella e Estere, de 7 anos —
filhos não biológicos da cantora.
Se a imprensa não a largou,
os lisboetas parecem ter sido discretos. "As pessoas em Lisboa geralmente
deixam-me em paz. De vez em quando alguém pede-me uma foto ou um autógrafo, mas
eu tiro muitas sem problemas", conta Madonna na segunda parte da sua
entrevista com a revista Vogue Itália.
Para além dos passeios
noturnos por Alfama, os passeios a cavalo na Comporta ou a Alcácer fizeram
fizeram parte da sua rotina. "Há muitas zonas em volta onde podes ir andar
a cavalo, e cada vez que o meu filho não tem jogo ao domingo, o dia torna-se
uma aventura em que podemos escolher um local para andar a cavalo", contou
numa das entrevistas.
Mas nem tudo foi
positivo. Um dos primeiros problemas da cantora em Portugal foi... tentar
convencer a alfândega de que era era 'a' Madonna. "Quando passas a semana
a tentar convencer a alfândega de que és mesmo a Madonna e, mesmo assim, eles
não libertam a tua encomenda", lia-se numa publicação na sua conta de
Instagram onde a cantora aparecia com um ar de poucos amigos.
Madonna quis ainda
levar um cavalo para dentro de um palacete em Sintra para a gravação de um
videoclip, mas foi-lhe negada a autorização. A cantora terá reagido mal,
tentando reverter a decisão da câmara. À data, em declarações
ao Expresso, Basílio Horta, presidente da Câmara de Sintra, defendeu
que “há coisas que o dinheiro não paga”.
O-i-t-o datas no Coliseu
Pelos quais se paga, e
bem, são os concertos da artista em terras lusas, com os preços a chegar aos
três dígitos. Bilhetes ainda há, mas apenas para os camarotes superiores e a um
valor de 200 euros.
Depois da América, a
série de oito concertos (a 12, 14, 16, 18, 19, 21, 22 e 23 de janeiro) que dará
na capital inaugura a digressão europeia de apresentação do novo disco.
Esta será a sexta
passagem da artista por palcos nacionais. A sua estreia aconteceu em 2004
com a "Re-Invention Tour", na Altice Arena (ainda com o
nome Pavilhão Atlântico). Regressou no ano seguinte para atuar nos MTV
Europe Music Awards, na mesma sala. Em 2008 foi a vez do Parque da Bela
Vista receber a "Sticky & Sweet Tour" e em 2012 rumou à cidade
dos estudantes para um concerto no Estádio Cidade de Coimbra com a
"MDNA Tour". Agora será a vez do Coliseu de Lisboa a receber.
'Sala tão pequena...!?'. Sim. Madonna quer proporcionar aos fãs uma
experiência intimista inspirada no que encontrou nas casas de fado e
de amigos em Portugal.
Espera-se, ainda, um
concerto bastante visual. Só não fique com a expectativa de ver fotos ou vídeos
a circular pelas redes sociais — a não ser o que for partilhado pela própria
artista. O concerto é "uma experiência sem telefones" e o uso de
telemóveis, smart watches e acessórios, câmaras ou outros
aparelhos de gravação não será permitido durante o espetáculo. Todos
estes dispositivos serão guardados numa caixa hermética à porta da sala e
apenas recuperados no final do concerto.
Sobre o alinhamento, e
de acordo com o Setlist.fm, o concerto será dividido em quatro atos mais
um encore. A produção cénica incluirá a reinvenção de uma casa de
fados e a interpretação de "Fado Pechincha", com o guitarrista Gaspar
Varela. No total serão ouvidas 21 músicas, entre clássicos e novos temas. De
fora fica "Faz Gostoso", mas pode haver surpresas.
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