HÁ UVAS NA BRANDA - E, SIM, HÁ RAZÕES PARA FICARMOS EMOCIONADOS
A 1100 metros de altitude, lá bem o cimo
de Portugal, está a ser cultivada uma vinha de Alvarinho da marca Soalheiro.
Mais que uma experiência vinícola é um teste ao futuro da casta, a pensar no
clima que muda, na terra que aquece e na capacidade de adaptação das plantas. É
tudo isso mas a emoção de ver nascer uvas onde seria impensável leva-nos de
volta à história da família, dos produtores da região e do futuro de um vinho
que chega a mais de 30 países onde dizem que "isto é verde, isto é Portugal".
Foi pura sorte. Num dia chuvoso de
setembro, já as vindimas tinham terminado, Maria João Cerdeira, uma das
responsáveis do Soalheiro, marca de Alvarinho sediada em Melgaço, levou-nos a
visitar um sítio onde poucos poderiam imaginar que um dia pudessem nascer as
uvas que darão o vinho. Foi pura sorte. Lá bem no alto, a 1100 metros de
altitude, numa paisagem ímpar, olhámos de cá de cima lá para baixo e de lá de
baixo cá para cima, e vimos as fileiras de videiras alinhadas e em sossego à espera do ano em que serão colhidas e se saberá o
vinho que delas resulta.
E foi quando atravessámos a encosta
virada ao sol quando o há – afinal, é Soalheiro que ali está plantado – que ao
dobrar os joelhos para ver mais de perto como estas plantas respondem ao
desafio dos humanos que vislumbrámos as primeiras uvas a brotar. Semanas antes,
Maria João tinha nos dito que os produtores de Soalheiro são uma espécie de
jardineiros que cuidam das suas vinhas como se fossem rosas. O espanto de ver
nascer uvas num local onde até aqui foi impensável plantá-las fez também de nós
um pouco jardineiros, emocionados com o momento da criação. “Há uvas na
Branda”, disse um de nós. E é verdade, há uvas na Branda e nós vimos as
primeiras. Foi pura sorte.
A "loucura" de plantar
Alvarinho a 1100 metros de altitude
“Porque é que não metemos aqui
Alvarinho?”. Seria uma pergunta normal no Alto Minho e mais ainda no concelho
de Melgaço, não fosse o facto de “aqui” ser a 1100 metros de altitude, num
lugar chamado Branda de Aveleira. Não faltam adjetivos para contar em palavras
o que é a Branda de Aveleira. É um sítio romântico e selvagem, antigo e jovem,
lindo e cru. É um sítio que só vendo e talvez por isso os leitores sejam melhor
servidos com algo mais substantivo. Nas palavras de Maria João Cerdeira: “é um
vale glaciar, que tem pedaços de granito errantes que aparecem ali no meio e
depois temos o xisto ...”. É neste lugar que Agostinho, que ali explora o
restaurante e algumas casas de turismo, se lembrou-se um dia de dizer a Luís
Cerdeira, irmão de Maria João e diretor do Soalheiro, que deviam experimentar
plantar Alvarinho naquelas alturas.
Eis como continua a história. “O meu
irmão rapidamente vê se concorda ou não, decidimos que vai para a frente diz-me
‘és responsável pela vinha’. E o primeiro Alvarinho plantado a 1100
metros de altitude arranca assim em 2019 em dois hectares de vinha ao alto.
É uma espécie de loucura fazer uma vinha
a 1100 metros de altitude, mas esta história vai para além do vinho. Há 16
referências de Soalheiro com a casta Alvarinho e a marca já tinha a experiência
com o granite, um alvarinho feito com vinhas selecionadas a uma altitude de 400
metros onde os solos são mais pobres e o vinho é menos aromático, mais
mineral. Mas são "só" 400 metros. Na Branda de Aveleira, a
fasquia elevou-se. “Precisamos de testar até onde a nossa planta consegue
adaptar-se. Temos as alterações climáticas, períodos de mais seca, de mais
stress hídrico e há um objetivo de que a planta se adapte e não sejam
necessárias grandes regas, que esteja adaptada ao local. Lá em cima, o facto de
termos xisto e não termos granito é uma vantagem, porque há mais absorção
quanto à humidade e ao calor, há mais reservas, a planta fica mais junto ao
solo e consegue aproveitar esse calor do xisto”.
As uvas que estão a nascer na Branda não
são, por isso, “apenas” a promessa de um novo vinho – mas de uma resistência
futura da casta. E, surpreendentemente, os 1100 metros e a qualidade do
território onde está a ser plantada a nova vinha ajustam-se ao que se pretende.
“O ciclo da planta tem um período de hibernar. Durante o inverno entra num
processo de dormência, só vai acordar quando a podamos - e vai-se
encaixar no ciclo da Branda, que é de maio a outubro, portanto, acreditamos que
é perfeita para aqui estar e tem-nos mostrado isso”. Mostrado como? Resistindo
a um inverno rigoroso, apenas com pequenas intervenções. A poda é um
momento-chave e o verbo não engana. “A planta vai abrulhar quando lhe damos
ordem e damos ordem com a poda”. Na Branda, a vinha abrulha em maio e em
outubro será a vindima.
Falta ainda um caminho a percorrer.
Maria João confidencia-nos: “antes de vir hoje à vinha convosco dizia ‘se
calhar, em três anos estamos a colher uvas, se calhar não, se calhar vai
demorar quatro’”. Isto foi antes do dia em que vimos uvas na Branda, mas, na
verdade, não muda a estimativa. “Todos os anos vamos aprender o que nos vai
mostrando e também vai servir para adaptarmos a outras situações cá em
baixo no vale”.
Horas depois, numa noite que já pedia o
calor de uma brasa, ouvimos a história do Soalheiro, da família que transformou
um pedaço de terra numa das marcas mais emblemáticas do vinho que dá nome à
região e de uma ideia que mais que uma empresa é um projeto de vida e um
desafio ao futuro.
A marca de um homem que não gostava de
ser inspetor das Finanças
Então era uma vez ...
“O Soalheiro é uma empresa familiar.
Foram os meus avós que ajudaram o meu pai e a minha mãe a plantar a primeira
vinha contínua de Alvarinho em Melgaço, em 1974”.
A vinha que nasce no ano da revolução
resultou de um espírito inquieto, o do pai de Luís e Maria João Cerdeira que hoje
são a segunda geração à frente da marca. Um percurso em nada óbvio, menos ainda
há quase 50 anos quando Portugal saía de outros tantos anos da sua História com
pouco currículo em matéria disso que hoje tanto se fala, empreendedorismo. O
fundador do Soalheiro foi empreendedor antes de tempo, se é que há tempo
nestas coisas.
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“O meu pai trabalhava na altura nas
finanças, tinha estado no Ultramar, e achava que os pais não tinham uma
agricultura sustentável, tinham uma agricultura de subsistência. O meu avô era
pescador e agricultor, a minha avó vivia da agricultura, e eram os dois de
Melgaço. Há uma coisa que o meu pai não gostava, que era ser inspetor das
finanças. E a partir dos 40 anos ele deixa de ser inspetor das finanças, diz
‘nem pensar’, e dedica-se exclusivamente ao Soalheiro”.
Mas seria precisos mais 13 anos, já num
país diferente, em 1987, para que essa decisão acontecesse. Em 1974, o pai
Cerdeira tinha apenas 27 anos e a mulher 24 anos – e é aí que tudo começa com a
ideia de trabalhar a plantação de Alvarinho porque a agricultura, ao contrário
das Finanças, era uma coisa que lhe dava prazer.
De pais para filhos.
Essa ideia passou para os filhos. A de
procurar o que se gosta fazer, o que torna os dias melhores. “Passou isso para
nós. Fazermos sempre algo que nos dê prazer, termos os pés assentes na terra,
sabermos que os sonhos precisam ter alguma coisa que se concretize e que seja
viável (...) que temos de lutar e que podemos não dormir algumas noites por
isso”. Uma ideia sempre pensada com a família no centro. “Ele não conseguia
deixar que a família não estivesse, quer a gente queira quer a gente não
queira, tínhamos de estar na vinha”.
Maria João e o irmão, que hoje lidera a
empresa, cresceram literalmente com o Soalheiro. Não têm memórias que não
tenham campo, agricultura, animais – e a vinha, claro. “O meu pai e a minha mãe
nunca nos mostraram a agricultura como sendo má, assim como para nós ter
sotaque é um orgulho. Por exemplo, houve uma altura em que tinha de ir ao Porto
de 8 em 8 dias, e o meu pai fazia questão de nos levar a um dos melhores
restaurantes. Ele não fazia grande questão de irmos de férias, porque era época
de trabalho e não se podia perder, mas quando saíamos não se importava de
gastar para nós experimentarmos alguma coisa de diferente, mesmo que fossemos
com uma roupa pior ou que fossemos numa carrinha de caixa aberta, que era o que
tínhamos na altura”.
Passaram-se mais de três décadas desde
que eram miúdos. Maria João quis ser veterinária e foi “parar ao vinho por
acaso” – e aqui está em “part-time” como diz porque continua a exercer
veterinária. A equipa com que trabalha sorri quando ouve o termo “part-time”,
mas ninguém diz quantas horas pode ter uma parte de tempo. Com o irmão, é
uma história diferente. “Eu sempre o vi no Soalheiro, sempre que o vi na
vindima, desde muito pequeno. E lembro-me do meu irmão com 18 anos assumir a
vindima como gente grande, ali com os produtores. Sempre foi o que quis”.
São vinhas, mas são rosas
Maria João, por seu lado, fala da vinha
com adjetivos que não estamos habituados. Não que o vinho não seja, por
excelência, um território emocional, mas esta é uma linguagem sobre o que está
antes do momento da prova. O que está na base de tudo. É natural que diga que
“isto é como se tivéssemos rosas, isto é um jardim, temos de tratar delas,
porque algumas são mais ariscas, outras são mais valentes ou outras são mais
sensíveis e nós vamos ter de ir percebendo”.
De onde é que isso vem? “Tem de haver
esse respeito quando somos parte integrante de um ecossistema, não somos mais
do que uma parte integrante, existem lá outros seres. Eu sou dona de alguma
coisa? Não sei, se calhar é demasiado filosófico”. Pode até ser, mas muda a
perspetiva de quem vem de fora pelo menos.
“A minha experiência foi suis
generis. No primeiro dia em que vim trabalhar, cheguei ali com
uma tesoura de poda e disseram ‘João, corta o velho’, que é uma coisa óbvia,
tipo “liga o computador”, e eu fiquei 15 segundos a olhar a pensar ‘o que é o
velho?’, e pronto comecei aí. Quando começas a aprender a ligar o computador
tens um longo caminho”.
Já agora, o “velho” são as varas
que deram o vinho desse ano e que quando se poda são as varas velhas. Têm a
casca mais enrugada, como tem o tronco.
As respostas às dúvidas de João, como de
outros produtores, não dependem apenas da visita da equipa da vinha técnica do
Soalheiro. Muitas vezes, tudo se resolve por Whatsapp ou um email. Há quem
mande fotografias a perguntar o que se passa.
“A confiança das pessoas é tão grande
que se alguma coisa não está do agrado delas, por exemplo, se há uma folha que
não está bem, querem ser ajudadas. Não há aquele receio de ‘eles vêm cá e vão
ver alguma coisa fora de sítio’, o raciocínio é exatamente o contrário, ‘eu
quero que a minha vinha seja a melhor’”, remata Maria João.
Destes 150 produtores que fazem parte do
clube, muitos são da família ou amigos. Há pessoas com 80 anos de idade que
continuam a trabalhar e fazem a sua rotina, há gente mais nova a querer saber
fazer. “No fundo, é um passar de testemunho”, diz Maria João.
Como empresa, durante anos, o Soalheiro
foi também um projeto de família, gerido pela família sem grande descanso. Hoje
são mais de 30 pessoas – mas para os dois irmãos pouco mudou. Maria João diz
que não tem ainda hoje essa noção, mesmo sabendo que a marca já chega a mais de
30 países. “Nós achamos que seremos um especialista em Alvarinho e
que podemos ser uma referência para o mundo, isso seria o sonho. Estamos
aqui num território que tem determinadas características, que conhecemos bem e
em que as pessoas identificam o alvarinho e dizem “isto é de Portugal, pertence
aos vinhos verdes”.
23 dez 2020
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