No primeiro de dois concertos em Lisboa, Roger Waters não veio para cantar canções de romantismo, embora tenha feito dedicatórias ao irmão mais velho, falecido no início deste ano, e à mulher, Kamila Chavis, que veio até Lisboa. Veja os vídeos e o alinhamento de um concerto-manifesto 18 MARÇO 2023
Set 1: Comfortably Numb
The Happiest Days of Our Lives
Another Brick in the Wall, Part 2
Another Brick in the Wall, Part 3
The Powers That Be
The Bravery of Being Out of Range
The Bar
Have a Cigar
Wish You Were Here
Shine On You Crazy Diamond (Parts VI-VII, V)
Sheep Set 2:
In the Flesh
Run Like Hell
Déjà Vu
Déjà Vu (Reprise)
Is This the Life We Really Want?
Money
Us and Them
Any Colour You Like
Brain Damage
Eclipse
Two Suns in the Sunset
The Bar (Reprise)
Outside the Wall
ROGER
WATERS NA ALTICE ARENA: A MÚSICA AINDA ESTÁ DO LADO CERTO DA BARRICADA
Naquele que foi o primeiro concerto da etapa europeia de “This Is Not A Drill”, digressão que é descrita por Roger Waters como “a sua primeira digressão de despedida”, o ex-Pink Floyd regressou a Portugal com êxitos geracionais e mensagens universais, manchadas pela guerra na Ucrânia. Mas as polémicas parecem ter ficado de fora, ao passo que a luta foi a de sempre.
O que escrevemos em 2018, por ocasião da última passagem de
Roger Waters por esta mesma Altice Arena, podíamos escrever ainda hoje. A
história não avança. A guerra, maldita, soa ainda com mais força aos ouvidos
dos europeus. Waters, cujas posições políticas o tornam, em igual medida, num
alvo a abater e em alguém que merece um holofote e um microfone, segue sem se
calar. Os Pink Floyd, enquanto entidade, nunca se reerguerão (e, depois das
mais recentes polémicas, com a esposa de David Gilmour a chamar “antissemita”,
“misógino” e “apologista de Putin” ao baixista, com o primeiro a corroborar a
“verdade” de cada palavra, muito menos). Os fãs dos Pink Floyd, enquanto houver
discos, não deixarão nunca de se reerguer. E a velha frase de Karl Marx parece
ter sofrido uma mutação: a história repete-se, e é agora simultaneamente
trágica e farsante.
Farsante, porque a posição de Waters em relação à guerra na Ucrânia,
colocando o ónus das hostilidades exclusivamente na NATO e no Ocidente, tende a
ignorar os crimes cometidos pelo outro lado da barricada. Que o músico tenha
discursado na ONU a convite do governo russo, quando passou uma carreira a
insurgir-se contra regimes autoritários e totalitários, mancha-o de uma camada
indelével de hipocrisia. Durante o espetáculo, o primeiro da digressão “This Is
Not A Drill”, que Waters descreve como “a sua primeira digressão de despedida”,
mencionou a influência de escritores como George Orwell (sobretudo “1984” e “O
Triunfo Dos Porcos”) e Aldous Huxley (“Admirável Mundo Novo”). Ao mesmo tempo,
como salientou o fã ao nosso lado, Waters mostrou, nos ecrãs habilmente
colocados a meio da Arena, várias imagens dos tempos antigos dos Pink Floyd,
cortando David Gilmour de todas elas, um gesto a roçar o estalinista...
Isso não significa que não se possa continuar a apreciar a música e a arte
de Roger Waters. Até porque muitos dos presentes na Altice Arena pertenceriam,
provavelmente, a um grupo numeroso de fãs dos Pink Floyd que gostam do grupo
pela sua música, tendendo a ignorar as letras (na reportagem do Público, o
jornalista Mário Lopes cita um fã que exclamou, no final, «nem me ponham a
falar das politiquices dele», um claro sinal nesse sentido; um pouco à
semelhança dos eleitores de direita que gostam de Rage Against The Machine sem
entender que estes os desprezam). Até porque, independentemente da nossa
posição em relação a algo que parece básico – devemos, ou não, apoiar o direito
da Ucrânia de se defender da agressão russa? Devemos, ou não, apoiar o direito
da classe ucraniana de se defender do fascismo russo? –, na base da mensagem de
Waters está um sentimento universal: os mais poderosos odeiam-nos e não se
importam com a nossa morte.
A polémica, nesta primeira de duas datas na Altice Arena, foi chutada para
canto. Do lado de fora, quando ainda não eram grandes as filas para entrar na
sala, não se vislumbraram quaisquer protestantes ucranianos ou, até,
israelitas, dias depois de a Comunidade Judaica do Porto ter tentado fazer com
que os concertos fossem cancelados, à semelhança do que aconteceu em Frankfurt,
na Alemanha. Tivemos, isso sim, quem à entrada distribuísse panfletos
pró-Palestina, lembrando que, nessa particular zona do mundo, há um povo que é
oprimido há 75 anos e com o qual poucos se parecem importar. O apoio veemente
de Waters a um boicote ao estado de Israel valeu-lhe várias acusações de
anti-semitismo, da parte de quem acha que toda a crítica que é feita às ações
desse mesmo estado é anti-semita (o que, sejamos francos, não é só uma
estupidez como é ofensivo, quer se apoie o tal boicote ou não). Essa luta em
particular enrijeceu-lhe a pele, e a mensagem que é colocada nos ecrãs, pouco
antes do início do concerto, é-o em tom de desafio: «se és daquelas pessoas que
adora os Pink Floyd mas não suporta as posições políticas de Roger Waters,
vai-te foder e enfia-te no bar».
Não vimos ninguém a enfiar-se no bar (muito menos a outra coisa), mas vimos
dezenas de telemóveis em punho assim que as luzes se apagam e os músicos tomam
as suas posições, divididos por cada um dos quatro cantos do palco. Às imagens
de uma cidade em ruínas seguiu-se 'Comfortably Numb', clássico dos Pink Floyd
com que Waters abre esta nova digressão e que ganha, aqui, uma nova roupagem
eletrónica, bem menos interessante que a original, presente em “The Wall”. A
ausência do mítico solo de guitarra – tocado por Gilmour, o que o deve
explicar... – também contribuíu para isso. Se no filme baseado em “The Wall” a
canção serve de banda-sonora ao momento em que a personagem principal, a
estrela rock Pink, é sedada de forma a poder dar um espetáculo, podemos traçar
um pequeno paralelo com o presente: Waters a escolhê-la para primeiro tema
da tour, criando uma analogia entre as suas posições e o quão
distante estas parecem colocá-lo do seu próprio público. A canção como
automedicação, para que o espetáculo possa continuar mesmo que queiram a sua
cabeça. E o contrário também se aplica, o público a perder-se no instrumental e
ignorando o que Waters diz: your lips move, but I can't hear what
you're saying.
Os ecrãs erguem-se e, por fim, toda a banda é revelada a todos os setores
da Altice Arena, para permitir a entrada em cena a Roger Waters, o stand
still! professoral de 'The Happiest Days Of Our Lives' gritado pelo
próprio. Os LEDs brilham com mensagens: are we good? Are they evil?,
para que o público coloque o seu próprio significado neste “nós” e neste
“eles”. Não que tenha tempo para pensar, já que de imediato surge a segunda (e
mais famosa) parte de 'Another Brick In The Wall', com milhares de vozes em
uníssono a mostrarem que continuam sem precisar de educação. Até se chegar a
'The Powers That Be', tema de “Radio K.A.O.S.”, com as mensagens a serem
trocadas pelos nomes de vítimas de violência policial, do fascismo, da
religião: Mahsa Amini, George Floyd, Breonna Taylor, Marielle Franco.
Lembramo-nos da digressão “Zoo TV”, dos U2, onde, com Sarajevo destroçada pela
guerra, os irlandeses faziam chamadas em directo com os habitantes da cidade
bósnia. Waters não chega a esses extremos, mas o propósito é o mesmo:
deixar-nos desconfortáveis e cientes do privilégio que é poder assistir a um
concerto rock, enquanto outros, irmãos, humanos, sofrem.
Não só. A ideia passa, também, por nos mostrar que somos cúmplices desses
crimes, sempre que deixamos calar a voz e depositamos a nossa confiança em
políticos mais ou menos eleitos. Ronald Reagan surge no ecrã (e é vaiado), e
por baixo a acusação: criminoso de guerra. George Bush, idem. Bill Clinton,
George W. Bush, Barack Obama, Donald Trump, o mesmo. Joe Biden? Esse já merece
uma nota de humor: “ainda só agora começou”, dando a entender que o atual
presidente norte-americano também será brevemente culpado de matar inocentes.
Com isto, Waters não pretende apenas criticar o complexo militar-industrial
norte-americano, e sim mostrar ao Ocidente que tem as mãos tão manchadas de
sangue quanto os seus supostos inimigos. Mais tarde, como que para vincar este
ponto, diria: «a NATO está a tornar tudo pior».
Uma garrafa de mezcal em cima do piano ilustra o momento mais intimista do
concerto, 'The Bar', que seria repetido no encore, desta feita com
toda a banda em volta de Waters para um brinde. O tema, o mais recente da sua
carreira a solo, tem origem no seu conceito de um bar, um lugar seguro onde nos
podemos encontrar com amigos e desconhecidos e, simplesmente, falar – que é, na
sua concepção, o mais importante que podemos fazer, especialmente no que toca à
Ucrânia (que Waters pronuncia como “the Ukraine”, artigo definido à frente,
prática que os próprios ucranianos querem terminar dado que essa forma de os
anglófonos se referirem ao país tem origem soviética). Um
pequeno percalço com a click track – não esquecer que foi o primeiro concerto da
etapa europeia da tour – obrigou-o a parar e a corrigir-se.
De volta ao passado, um dos maiores destaques da noite foi para 'Have A
Cigar', que soou incrivelmente poderosa (também) por cortesia de Joey Waronker,
o baterista de serviço. 'Wish You Were Here' deu início a uma longa homenagem a
Syd Barrett, que foi seu amigo de infância e o homem que mais marcou os
primeiros tempos dos Pink Floyd, de tal forma que nos referimos quase sempre a
um pós-Syd Barret quando falamos de “A Saucerful of Secrets” (que ainda contou
com ele) para a frente. Nos ecrãs, Waters contou a história de como assistiu a
um concerto de Gene Vincent e dos Rolling Stones ao lado de Barrett, que
finalizou com «quando se perde alguém que amamos, isso serve para nos
lembrarmos: this is not a drill», ou «isto não é uma simulação», em
português. Pouco importa que a história nos diga que Waters, ao lado dos demais
Pink Floyd, optou por abandonar Barrett em casa, a caminho de um concerto em
Southampton, marcando a sua saída do grupo. A homenagem culminou com 'Shine On
You Crazy Diamond', partes seis a oito, até se chegar a 'Sheep', canção que
contou com a presença de uma enorme ovelha insuflável a pairar pelos ares, e
com o momento caricato protagonizado por um casal, que claramente não sabia o
significado de “ovelha” para além do animal, e decidiu posar para uma
fotografia assim que a banda a começa a tocar.
Após um intervalo que serviu para testemunhar que, apesar das invectivas de
Waters contra o patriarcado, os seus concertos continuam a ser sobretudo para
homens (a casa de banho destes estava repleta, a das mulheres não), o músico
regressou de gabardina, óculos escuros e sob longos panos com martelos para
encarnar a figura totalitária que construiu “The Wall”, terminando 'In The
Flesh' com uma rajada de metralhadora. 'Run Like Hell', dedicada «aos
paranóicos presentes na Arena», antecedeu imagens de civis mortos pelo exército
norte-americano no Iraque, as quais só conhecemos por mérito de Chelsea Manning
e Julian Assange. Daí, Waters partiria para o campo da reinvidicação (e aí ninguém
poderá criticar a mensagem): «todos precisamos de ter direitos», sejamos nós
palestinianos, iémenis, nativo-americanos, mulheres, pessoas transgénero ou –
muito resumidamente – humanos. A muito saudada 'Money', com o guitarrista Dave
Kilminster a emular Gilmour na perfeição, foi ainda mais directa: «os porcos
vão matar-nos a todos».
Navegando pelas águas
de “The Dark Side Of The Moon”, Waters e grupo foram saltitando por 'Us and
Them', 'Any Colour You Like', 'Brain Damage' e 'Eclipse', partindo para o encore com
um “obrigado” em português dirigido a todos os lados da Altice Arena (ainda que
se tenha equivocado nos respetivos pontos cardeais). Esse disco fez
recentemente 50 anos, mas há um outro prestes a cumprir data redonda: “The
Final Cut”, que cumpre o seu 40º aniversário esta terça-feira, 21 de março, e
que está nesta digressão representado por 'Two Suns In The Sunset', uma bonita
canção sobre holocausto nuclear. «Estamos a passar pelos tempos mais perigosos
que há vivemos», afirmou, referindo também o célebre Relógio do Juízo Final,
que marca atualmente 90 segundos para o apocalipse. Um copo erguido ao público,
Waters aproveitou também para homenagear o seu irmão mais velho, recentemente
falecido, antes de terminar o espetáculo com uma interpretação mei escuteiro,
meio Arcade Fire, de 'Outside The Wall', com os membros da banda a saírem do
palco em fila, continuando a tocar até chegarem aos bastidores. Ninguém vai
alterar a sua posição política depois deste espetáculo, o que é tão válido
agora como em 2018. Muitos dos fãs dos Pink Floyd continuarão sem entender a
mensagem, quando não a ignoram completamente. Pena é que o próprio, às vezes,
também o faça, e daí todas as contradições do artista ao longo do último ano.
Mas se alguém tiver saído da Altice Arena com vontade de dialogar em vez de
pegar imediatamente numa pistola, pode ser que o relógio recue umas milésimas.
Paulo André CecílioTexto
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