O cancro e o processo de luto.
O cancro é uma das
principais causas de morte da população portuguesa, sendo considerada a “doença
do século”. As representações sociais inerentes a esta doença levam a que o
diagnóstico de cancro, mais do que qualquer outra doença crónica, seja percecionado
como “um fim de vida”.
Apesar dessa noção e
de algumas frases infelizes como “se tem cancro é só mais uns meses e Deus já
o(a) leva”, o processo de morte é particularmente doloroso – para o próprio e
para as pessoas que se encontram à sua volta. Não raras vezes, as famílias
iniciam um processo de luto antecipatório.
Por luto antecipatório
entende-se o processo de perdas simbólicas que é iniciado perante a proximidade
da morte da pessoa que se encontra doente e que culmina, exatamente, com a
perda real dessa pessoa.
Ao longo deste
processo de luto, o sofrimento vai crescendo, pois os sentimentos de revolta,
injustiça, raiva e desespero aumentam à medida que a pessoa é confrontada com a
degradação da saúde do outro e com a aproximação da morte.
É exigido à pessoa em
luto que, diariamente, tenha de gerir a dor emocional provocada pelas perdas
simbólicas, como a perda dos planos para o futuro (por exemplo, o casamento,
viagens) ou a perda da qualidade da relação (por exemplo, redução da
comunicação e do toque devido à degradação provocada pela doença), e pelas
perdas reais, como a perda da autonomia da pessoa com cancro. É como se, todos
os dias, a pessoa em luto perdesse um pouco da pessoa amada.
Este contacto
permanente com a morte pode, por um lado, preparar os familiares para a perda e
permitir que recorram à rede de suporte social ou a ajuda especializada. Ainda
assim, na maioria das vezes, ainda que em contacto com o avanço crescente da
doença, as pessoas encontram-se em negação e ainda que não tenham esperança da
cura, possuem esperança de viver mais uns dias ao lado do outro. São frequentes
frases como “nós sabíamos que ele ia morrer, mas nunca estamos preparados,
parece sempre uma ideia longínqua, como se ainda faltasse muito para esse dia”.
A ciência psicológica
aponta para a existência de um conflito interno que reforça o sofrimento dos
familiares, dadas as emoções ambivalentes que são desencadeadas por este
processo. Por um lado, a necessidade de preservar a relação com a pessoa e ter
disponibilidade emocional para aproveitar os últimos momentos e, por outro, a
necessidade de deixar o outro descansar e, por sua vez, “dizer adeus”.
Para além da
impotência associada à iminência da morte, por vezes, surge uma enorme
frustração associada à incapacidade de “aproveitar os últimos dias”, devido ao
sofrimento emocional provocado pela doença e tendencial esgotamento da família durante a prestação de cuidados, dada a
exigência em termos físicos e emocionais. Em alguns casos podem surgir
sentimentos de culpa no processo de luto (“estávamos todos tão cansados, parece
que nem tivemos tempo de nos despedirmos, aproveitar os dias que restavam com
ela”).
Mais uma vez, é
vivenciado um conflito interno: por um lado, a necessidade de estar em contacto
com a dor, processar as emoções e organizar os pensamentos e, por outro, o
desejo de proteger a pessoa doente de percecionar a exaustão e o sofrimento que
é vivenciado pela família.
Neste sentido, existe o risco de a
pessoa em luto sentir a necessidade de reprimir as suas emoções, negar o seu
próprio direito a estar em luto para não causar sofrimento às pessoas à sua volta
e, principalmente, à pessoa amada. Frequentemente, todos os membros da família
se encontram em luto, com estratégias diferentes, nem sempre dialogadas, o que
dificulta a existência de uma experiência de ajuda mútua no seio familiar,
apesar de o objetivo comum passar por manter a normalidade e aproveitar os
últimos dias.
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