De pai dos antivírus a foragido da justiça, a vida de John McAfee não dava um filme — dava uma trilogia
AFP or licensors
John McAfee, de 75 anos, criador do famoso
antivírus informático do mesmo nome, foi ontem encontrado morto na cela que
ocupava no Centro Penitenciário de Brians 2, em Sant Esteve Sesrovires,
Barcelona. O cariz da sua morte — determinada por suicídio — choca pela
violência, mas não surpreende dados os contornos de uma vida vivida sempre no
limite.
Nascido apenas duas semanas depois do fim
oficial da II Guerra Mundial, a 18 de setembro de 1945, McAfee devia a sua
dupla nacionalidade — anglo-americana — devido ao facto de ter vindo ao mundo
na pequena localidade de Cinderford, no Reino Unido, tendo crescido na cidade
de Salem, no estado de Virgínia, já nos EUA.
Vítima de uma infância violenta, McAfee
cresceu com um pai abusivo que lhe “batia sem misericórdia” — como o
empreendedor admitiu ao seu biógrafo — e que se suicidou quando o filho tinha
15 anos. Apesar do contexto adverso, McAfee licenciou-se em Matemática em 1967
e, duas décadas depois, ajudou a fundar a empresa que ainda hoje tem o seu
nome.
Como recorda o The Guardian, a
oportunidade de fundar a McAfee Associates surgiu depois do primeiro grande
vírus informático, o “Brain”, ter aterrorizado a Internet em 1986. Até lá, John
McAfee teve vários trabalhos, desde ter trabalhado como engenheiro informático
no programa Apollo da NASA até ser empregado em empresas como a Siemens,
General Electric e Lockheed.
Sabendo do potencial comercial em combater
vírus informáticos, McAfee não só foi dos primeiros a criar um programa
antivírus — o VirusScan — como a McAfee Associates inaugurou todo um mercado de
venda de software pela Internet. O fabricante, todavia, vendeu
a sua participação em 1994 e abandonou a empresa.
Ao longo da vida, McAfee renegaria mesmo o
seu passado com a empresa que fundou. Em 2014, perante as notícias de que a
Intel, que tinha comprado a McAfee Associates em 2011, pretendia mudar o seu
nome para não tê-la associada ao seu controverso fundador, este reagiu com
alívio: “Estou agora para sempre
grato à Intel por libertar-me desta terrível associação ao pior software do
planeta”. Além disso, um dos pais dos antivírus admitiu não usá-los,
apesar de ser uma das figuras mais ameaçadas do mundo por ser “uma marca de
honra” para os hackers conseguirem atacá-lo. “Mudo de IP
constantemente, não coloco o meu nome em nenhum aparelho que uso e não vou a
websites onde posso apanhar vírus, como sites pornográficos”, disse.
Depois da McAfee Associates, o magnata
passou a década seguinte ocupado com outras iniciativas — incluindo um sistema
de mensagens instantâneas e um programa firewall [algo que protege o utilizador
dos perigos da Internet como roubo, intrusão, etc] —, a investir em
propriedades — incluindo um mega-rancho no Novo México onde oferecia aos
visitantes viagens em pequenas aeronaves — e a dedicar-se ao yoga. A crise
financeira de 2008, todavia, atingiu-o com força, passando de valer 100
milhões para “apenas” 4 milhões de dólares e forçando-o a
vender ações em que tinha investido e propriedades que tinha comprado.
Homicídios, drogas e fugas — uma vida às
avessas
Desde o início da sua vida profissional que
McAfee foi um íman de polémicas, dada a sua personalidade excêntrica, a sua
constante luta com vícios, particularmente o consumo de estupefacientes e
álcool, e os seus apetites sexuais — um dos primeiros casos foi justamente
ter-se envolvido com uma estudante universitária, com a qual mais tarde se
casou, quando estava a fazer um doutoramento, levando a universidade em causa a
expulsá-lo.
A imagem moderna que o marcou — cabelo
oxigenado, quase sempre de tronco nú a evidenciar as suas múltiplas tatuagens —
foi cultivada no Belize, para onde se mudou depois da crise e já depois de ter
feito desintoxicação. Constantemente acompanhado de guarda-costas armados e
jovens mulheres — ainda que, segundo relatos, fosse proibido consumir drogas e
álcool na sua residência —, McAfee foi viver para este país da América Central
com o objetivo aparente de estudar bactérias endémicas para produzir
antibióticos.
O projeto começou logo a dar problemas, com
a demissão da microbióloga com quem estava a trabalhar, mas as coisas pioraram
seriamente com uma rusga policial feita com as suspeitas de que estaria na
verdade a ocultar um laboratório de metanfetaminas. Em entrevista à BBC em
2013, o magnata negou tudo e acusou as autoridades locais de matar-lhe um cão,
confiscar-lhe o passaporte e detê-lo porque se recusou a fazer contribuições
financeiras a uma campanha política. Este e outros episódios foram explorados
no documentário "Gringo: The
Dangerous Life of John McAfee", de 2016.
Apesar de várias doações feitas à polícia
terem amenizado a situação, um novo caso veio definitivamente colocar um ponto
final na sua aventura em Belize. Foi quando, em novembro de 2012, surgiram
notícias de que a sua residência na ilha de Ambergris Caye tinha sido alvo de
uma ação policial para interrogá-lo a propósito da morte do seu vizinho
norte-americano, Gregory Faull, encontrado com ferimentos de tiros.
Faull supostamente tinha uma má relação com
McAfee devido ao caos que o empreendedor trouxe com o seu estilo de vida para a
vizinhança. Por isso mesmo, o programador foi considerado suspeito. Procurado
na sua propriedade, as autoridades não encontraram McAfee porque este, segundo
uma entrevista à revista Wired, se escondeu na sua propriedade, enterrado na areia
com uma caixa de papelão sobre a cabeça para respirar. "Foi muito
desconfortável. (...) Mas eles tinham-me matado se me tivessem
encontrado", disse à publicação.
Em fuga a partir de então, McAfee fez
questão de ir escrevendo entradas no seu blog e de dar entrevistas a meios
internacionais para dar sinais de vida e impedir que o detivessem sem deixar
rasto. Em dezembro, foi detido na vizinha Guatemala por entrada ilegal no país,
pretendendo pedir asilo político. Na sua entrevista à BBC, McAfee disse que a
detenção se deu justamente pela atenção mediática que gerou — uma equipa de
filmagem da revista Vice a documentar a sua vida em clandestinidade partilhou
inadvertidamente a sua localização.
Segundo o próprio e os seus advogados,
McAfee estava a ser “perseguido politicamente porque parou de dar dinheiro ao
Governo” do Belize, acusando políticos e autoridades de corrupção. No entanto,
apesar de todo o reboliço, McAfee não chegou a ser formalmente acusado pelo
país, nem sequer alvo de um mandato de busca — o primeiro-ministro belizenho,
Dean Barrow, chegou mesmo a dizer publicamente: “Não quero ser desagradável
para o senhor, mas acredito que é extremamente paranóico, talvez mesmo louco”.
A dar razão a Barrow estão vários episódios
documentados de McAfee ao longo da sua vida, desde a sua recusa em 2015 a ser
entrevistado por um canal norte-americano sem estar na posse de uma arma até
ao relato de Joshua Davis, jornalista que acompanhou seis meses da sua vida
tumultuosa em 2012 e o viu a sacar de uma pistola e apontá-la à própria cabeça
com uma bala carregada, premindo o gatilho num jogo de “roleta russa”.
De resto, esta não foi a primeira vez que
uma pistola esteve junto à sua cabeça. Quando esteve em Belize, McAfee conheceu
Amy Emshwiller, uma prostituta de 16 anos que, segundo a própria, na mesma
entrevista à BBC, o enganou dizendo que era maior de idade. Deixando a sua
namorada norte-americana de longa data, a sua relação foi marcada por um
episódio em que Emshwiller apontou uma arma à sua cabeça e disparou, falhando
mas rompendo-lhe um tímpano. Apesar de tudo, perdoou-a, mas separaram-se quando
McAfee regressou para os EUA, aterrando em Miami depois de ser expulso da Guatemala,
tendo fingido sofrer um ataque cardíaco para forçar o seu retorno.
Presidência, criptomoeda e uma morte por
desvendar
De volta aos EUA, McAfee manteve a mesma
persona polarizante, ainda que mantendo-se temporariamente afastado de casos.
Regressado de Belize, publicou um vídeo-paródia que se tornou viral, no qual
satiriza a sua fama de mulherengo e consumidor de droga enquanto faz um guia
para demonstrar como desinstalar os antivírus McAfee dos computadores.
McAfee tornou-se um promotor de criptomoeda,
um ativista pela privacidade digital na era das grandes empresas tecnológicas e
um defensor ardente do libertarianismo, sendo firmemente anti-impostos. Aliás,
o magnata candidatou-se às primárias do Partido Libertário para tentar
concorrer nas eleições presidenciais de 2016 e 2020, mas em ambos os casos
perdeu para outros candidatos.
A aparente normalidade da sua vida desabou
em 2019. Primeiro, um tribunal da Florida condenou-o a pagar 25 milhões de
euros à família de Faull por considerar que teve responsabilidade pela morte do
ex-vizinho; McAfee recusou-se a pagar, dizendo que não tinha bens em seu nome.
Depois, segundo a Associated Press, foi detido na República Dominicana com
mais cinco pessoas por suspeitas de transportarem armas de alto calibre e
munições num iate. O milionário tinha revelado dias antes da sua prisão que
estava a abandonar os EUA porque a CIA estava a tentar prendê-lo por alegados
delitos fiscais.
A sua oposição a pagar impostos
aparentemente passou da teoria à prática porque em outubro de 2020 foi detido
em Barcelona quando se preparava para apanhar um voo para Istambul acompanhado
por duas pessoas. A detenção foi feita pelas autoridades espanholas a pedido de
um mandado de procura passado pela justiça dos EUA por suspeita de fugir ao
pagamento de milhões de dólares em impostos sobre os lucros que alegadamente
teria obtido em atividades como o comércio criptomoedas ou a venda de direitos
sobre a sua história de vida para a realização de um documentário.
Em prisão preventiva no Centro
Penitenciário de Brians 2 desde então, tinha sido revelado esta quarta-feira,
23 de junho, que o Governo espanhol tinha concordado com a extradição de McAfee
para os Estados Unidos, onde enfrentava uma possível pena de 30 anos de prisão
por dever perto de quatro milhões de dólares. Na audiência, o empresário
assegurou ter pagado “milhões de dólares em impostos” e disse ser vítima de uma
perseguição política por ter denunciado corrupção na agência tributária
norte-americana.
No próprio dia da decisão, McAfee foi
encontrado morto na sua cela. A comissão judicial que se deslocou ao centro
penitenciário está a investigar as causas da morte de McAfee e, segundo as
mesmas fontes, tudo aponta para que se tenha tratado de suicídio. Menos de 24
horas depois, porém, pululam as teorias da conspiração de que
não McAfee não terá tirado a própria vida, mas sim sido assassinado ou que terá
fingido a sua morte.
Em causa está o facto da última publicação
na sua conta de Instagram ter sido um “Q”, uma aparente referência ao grupo de
teorias da conspiração Qanon. Além disso, a sua morte mimetiza a de Jeffrey Epstein, seu amigo e multimilionário
acusado de abuso sexual de jovens que também se suicidou na sua cela, a 10 de
agosto de 2019. No entanto, numa referência direta a este caso, McAfee escreveu
num tweet a 10 de outubro de 2020 — já no cárcere — que estava contente e bem
alimentado. “Se eu me enforcar, a la Epstein, não terá sido culpa minha”,
avisou.
Enquanto se aguarda a autópsia ao corpo —
algo que poderá levar várias semanas —, a família de McAfee diz-se surpreendida com
a morte e, apesar do advogado espanhol contratado para este caso não suspeitar
de possíveis envolvimentos na sua morte, culpou o sistema judicial espanhol por
não lhe dar fiança e agravar a sua fragilidade.
António Moura dos SantosTexto
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