sexta-feira, 25 de junho de 2021

R.I.P - JOHN MCAFEE

 De pai dos antivírus a foragido da justiça, a vida de John McAfee não dava um filme — dava uma trilogia

 Aguardando a sua extradição para os EUA para responder por crimes de fraude fiscal, o magnata informático John McAfee foi encontrado morto na sua cela da prisão em Barcelona. O seu fim trágico aos 75 anos termina uma vida caótica de grandes conquistas e tumultos constantes. Pai dos antivírus que passou a detestá-los, McAfee foi também um empreendedor de sucesso, um candidato presidencial e um foragido da justiça na América Central.

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John McAfee, de 75 anos, criador do famoso antivírus informático do mesmo nome, foi ontem encontrado morto na cela que ocupava no Centro Penitenciário de Brians 2, em Sant Esteve Sesrovires, Barcelona. O cariz da sua morte — determinada por suicídio — choca pela violência, mas não surpreende dados os contornos de uma vida vivida sempre no limite.

Nascido apenas duas semanas depois do fim oficial da II Guerra Mundial, a 18 de setembro de 1945, McAfee devia a sua dupla nacionalidade — anglo-americana — devido ao facto de ter vindo ao mundo na pequena localidade de Cinderford, no Reino Unido, tendo crescido na cidade de Salem, no estado de Virgínia, já nos EUA.

Vítima de uma infância violenta, McAfee cresceu com um pai abusivo que lhe “batia sem misericórdia” — como o empreendedor admitiu ao seu biógrafo — e que se suicidou quando o filho tinha 15 anos. Apesar do contexto adverso, McAfee licenciou-se em Matemática em 1967 e, duas décadas depois, ajudou a fundar a empresa que ainda hoje tem o seu nome.

Como recorda o The Guardian, a oportunidade de fundar a McAfee Associates surgiu depois do primeiro grande vírus informático, o “Brain”, ter aterrorizado a Internet em 1986. Até lá, John McAfee teve vários trabalhos, desde ter trabalhado como engenheiro informático no programa Apollo da NASA até ser empregado em empresas como a Siemens, General Electric e Lockheed.

Sabendo do potencial comercial em combater vírus informáticos, McAfee não só foi dos primeiros a criar um programa  antivírus — o VirusScan — como a McAfee Associates inaugurou todo um mercado de venda de software pela Internet. O fabricante, todavia, vendeu a sua participação em 1994 e abandonou a empresa.

Ao longo da vida, McAfee renegaria mesmo o seu passado com a empresa que fundou. Em 2014, perante as notícias de que a Intel, que tinha comprado a McAfee Associates em 2011, pretendia mudar o seu nome para não tê-la associada ao seu controverso fundador, este reagiu com alívio: “Estou agora para sempre grato à Intel por libertar-me desta terrível associação ao pior software do planeta”. Além disso, um dos pais dos antivírus admitiu não usá-los, apesar de ser uma das figuras mais ameaçadas do mundo por ser “uma marca de honra” para os hackers conseguirem atacá-lo. “Mudo de IP constantemente, não coloco o meu nome em nenhum aparelho que uso e não vou a websites onde posso apanhar vírus, como sites pornográficos”, disse.

Depois da McAfee Associates, o magnata passou a década seguinte ocupado com outras iniciativas — incluindo um sistema de mensagens instantâneas e um programa firewall [algo que protege o utilizador dos perigos da Internet como roubo, intrusão, etc] —, a investir em propriedades — incluindo um mega-rancho no Novo México onde oferecia aos visitantes viagens em pequenas aeronaves — e a dedicar-se ao yoga. A crise financeira de 2008, todavia, atingiu-o com força, passando de valer 100 milhões para “apenas” 4 milhões de dólares e forçando-o a vender ações em que tinha investido e propriedades que tinha comprado.

Homicídios, drogas e fugas — uma vida às avessas

Desde o início da sua vida profissional que McAfee foi um íman de polémicas, dada a sua personalidade excêntrica, a sua constante luta com vícios, particularmente o consumo de estupefacientes e álcool, e os seus apetites sexuais — um dos primeiros casos foi justamente ter-se envolvido com uma estudante universitária, com a qual mais tarde se casou, quando estava a fazer um doutoramento, levando a universidade em causa a expulsá-lo.

A imagem moderna que o marcou — cabelo oxigenado, quase sempre de tronco nú a evidenciar as suas múltiplas tatuagens — foi cultivada no Belize, para onde se mudou depois da crise e já depois de ter feito desintoxicação. Constantemente acompanhado de guarda-costas armados e jovens mulheres — ainda que, segundo relatos, fosse proibido consumir drogas e álcool na sua residência —, McAfee foi viver para este país da América Central com o objetivo aparente de estudar bactérias endémicas para produzir antibióticos.

O projeto começou logo a dar problemas, com a demissão da microbióloga com quem estava a trabalhar, mas as coisas pioraram seriamente com uma rusga policial feita com as suspeitas de que estaria na verdade a ocultar um laboratório de metanfetaminas. Em entrevista à BBC em 2013, o magnata negou tudo e acusou as autoridades locais de matar-lhe um cão, confiscar-lhe o passaporte e detê-lo porque se recusou a fazer contribuições financeiras a uma campanha política. Este e outros episódios foram explorados no documentário "Gringo: The Dangerous Life of John McAfee", de 2016.

Apesar de várias doações feitas à polícia terem amenizado a situação, um novo caso veio definitivamente colocar um ponto final na sua aventura em Belize. Foi quando, em novembro de 2012, surgiram notícias de que a sua residência na ilha de Ambergris Caye tinha sido alvo de uma ação policial para interrogá-lo a propósito da morte do seu vizinho norte-americano, Gregory Faull, encontrado com ferimentos de tiros.

Faull supostamente tinha uma má relação com McAfee devido ao caos que o empreendedor trouxe com o seu estilo de vida para a vizinhança. Por isso mesmo, o programador foi considerado suspeito. Procurado na sua propriedade, as autoridades não encontraram McAfee porque este, segundo uma entrevista à revista Wired, se escondeu na sua propriedade, enterrado na areia com uma caixa de papelão sobre a cabeça para respirar. "Foi muito desconfortável. (...) Mas eles tinham-me matado se me tivessem encontrado", disse à publicação.

Em fuga a partir de então, McAfee fez questão de ir escrevendo entradas no seu blog e de dar entrevistas a meios internacionais para dar sinais de vida e impedir que o detivessem sem deixar rasto. Em dezembro, foi detido na vizinha Guatemala por entrada ilegal no país, pretendendo pedir asilo político. Na sua entrevista à BBC, McAfee disse que a detenção se deu justamente pela atenção mediática que gerou — uma equipa de filmagem da revista Vice a documentar a sua vida em clandestinidade partilhou inadvertidamente a sua localização.

John McAfee, quando foi detido na Guatemala créditos: AFP PHOTO/PDH

Segundo o próprio e os seus advogados, McAfee estava a ser “perseguido politicamente porque parou de dar dinheiro ao Governo” do Belize, acusando políticos e autoridades de corrupção. No entanto, apesar de todo o reboliço, McAfee não chegou a ser formalmente acusado pelo país, nem sequer alvo de um mandato de busca — o primeiro-ministro belizenho, Dean Barrow, chegou mesmo a dizer publicamente: “Não quero ser desagradável para o senhor, mas acredito que é extremamente paranóico, talvez mesmo louco”.

A dar razão a Barrow estão vários episódios documentados de McAfee ao longo da sua vida, desde a sua recusa em 2015 a ser entrevistado por um canal norte-americano sem estar na posse de uma arma até ao relato de Joshua Davis, jornalista que acompanhou seis meses da sua vida tumultuosa em 2012 e o viu a sacar de uma pistola e apontá-la à própria cabeça com uma bala carregada, premindo o gatilho num jogo de “roleta russa”.

De resto, esta não foi a primeira vez que uma pistola esteve junto à sua cabeça. Quando esteve em Belize, McAfee conheceu Amy Emshwiller, uma prostituta de 16 anos que, segundo a própria, na mesma entrevista à BBC, o enganou dizendo que era maior de idade. Deixando a sua namorada norte-americana de longa data, a sua relação foi marcada por um episódio em que Emshwiller apontou uma arma à sua cabeça e disparou, falhando mas rompendo-lhe um tímpano. Apesar de tudo, perdoou-a, mas separaram-se quando McAfee regressou para os EUA, aterrando em Miami depois de ser expulso da Guatemala, tendo fingido sofrer um ataque cardíaco para forçar o seu retorno.

Presidência, criptomoeda e uma morte por desvendar

De volta aos EUA, McAfee manteve a mesma persona polarizante, ainda que mantendo-se temporariamente afastado de casos. Regressado de Belize, publicou um vídeo-paródia que se tornou viral, no qual satiriza a sua fama de mulherengo e consumidor de droga enquanto faz um guia para demonstrar como desinstalar os antivírus McAfee dos computadores.

McAfee tornou-se um promotor de criptomoeda, um ativista pela privacidade digital na era das grandes empresas tecnológicas e um defensor ardente do libertarianismo, sendo firmemente anti-impostos. Aliás, o magnata candidatou-se às primárias do Partido Libertário para tentar concorrer nas eleições presidenciais de 2016 e 2020, mas em ambos os casos perdeu para outros candidatos.

A aparente normalidade da sua vida desabou em 2019. Primeiro, um tribunal da Florida condenou-o a pagar 25 milhões de euros à família de Faull por considerar que teve responsabilidade pela morte do ex-vizinho; McAfee recusou-se a pagar, dizendo que não tinha bens em seu nome. Depois, segundo a Associated Press, foi detido na República Dominicana com mais cinco pessoas por suspeitas de transportarem armas de alto calibre e munições num iate. O milionário tinha revelado dias antes da sua prisão que estava a abandonar os EUA porque a CIA estava a tentar prendê-lo por alegados delitos fiscais.

A sua oposição a pagar impostos aparentemente passou da teoria à prática porque em outubro de 2020 foi detido em Barcelona quando se preparava para apanhar um voo para Istambul acompanhado por duas pessoas. A detenção foi feita pelas autoridades espanholas a pedido de um mandado de procura passado pela justiça dos EUA por suspeita de fugir ao pagamento de milhões de dólares em impostos sobre os lucros que alegadamente teria obtido em atividades como o comércio criptomoedas ou a venda de direitos sobre a sua história de vida para a realização de um documentário.

Em prisão preventiva no Centro Penitenciário de Brians 2 desde então, tinha sido revelado esta quarta-feira, 23 de junho, que o Governo espanhol tinha concordado com a extradição de McAfee para os Estados Unidos, onde enfrentava uma possível pena de 30 anos de prisão por dever perto de quatro milhões de dólares. Na audiência, o empresário assegurou ter pagado “milhões de dólares em impostos” e disse ser vítima de uma perseguição política por ter denunciado corrupção na agência tributária norte-americana.

No próprio dia da decisão, McAfee foi encontrado morto na sua cela. A comissão judicial que se deslocou ao centro penitenciário está a investigar as causas da morte de McAfee e, segundo as mesmas fontes, tudo aponta para que se tenha tratado de suicídio. Menos de 24 horas depois, porém, pululam as teorias da conspiração de que não McAfee não terá tirado a própria vida, mas sim sido assassinado ou que terá fingido a sua morte.

Em causa está o facto da última publicação na sua conta de Instagram ter sido um “Q”, uma aparente referência ao grupo de teorias da conspiração Qanon. Além disso, a sua morte mimetiza a de Jeffrey Epstein, seu amigo e multimilionário acusado de abuso sexual de jovens que também se suicidou na sua cela, a 10 de agosto de 2019. No entanto, numa referência direta a este caso, McAfee escreveu num tweet a 10 de outubro de 2020 — já no cárcere — que estava contente e bem alimentado. “Se eu me enforcar, a la Epstein, não terá sido culpa minha”, avisou.

Enquanto se aguarda a autópsia ao corpo — algo que poderá levar várias semanas —, a família de McAfee diz-se surpreendida com a morte e, apesar do advogado espanhol contratado para este caso não suspeitar de possíveis envolvimentos na sua morte, culpou o sistema judicial espanhol por não lhe dar fiança e agravar a sua fragilidade.

António Moura dos SantosTexto

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