João Garcia no topo do monte Evereste, Michael Collins a orbitar a Lua ou, o velejador açoriano, Genuíno Madruga na sua volta solitária ao mundo. Homens pioneiros, líderes que partilham entre si a capacidade de estar sozinho sem sentir solidão.
João Carlos Melo é médico psiquiatra, psicoterapeuta, e autor do livro “Uma Luz na Noite Escura – A solidão e a capacidade de estar só” (Bertrand Editora) onde tenta desvendar como se vive a solidão e a importância de saber estar só.
Naturalmente o Homem não procura estar sozinho, mas é da capacidade de estarmos connosco que nascem as habilidades de nos ligarmos ao mundo.
Por vezes, vemos os grandes líderes como pessoas solitárias, apesar de trabalharem com uma grande equipa. Na gestão de uma organização, é uma qualidade saber estar só?
Há pessoas que gostam mais de trabalhar em equipa e valorizam outras opiniões, mas ao mesmo tempo assumindo a responsabilidade de a decisão final ser sua. Este aspeto é muito solitário. Há decisões que devem ser bem pensadas, refletidas. Profissões como anestesistas ou cirurgiões, tomam decisões sozinhas, o que não significa que estejam a sofrer. Mas também há pessoas que se sentem sós por que não acreditam que possam ser amadas. Não usufruem de uma interação genuína com os outros.
Fala de pessoas inspiradoras que se colocaram numa missão de vencer a solidão. Quando temos um trabalho que nos dá prazer, ele pode ser uma forma de colmatar a solidão?
O trabalho é importante, mas isso vale para qualquer tarefa, objetivo, mesmo no dia a dia, coisas banais, ou para grandes missões na vida. O açoriano Genuíno Madruga, uma das pessoas sobre quem falo no livro, já deu duas vezes a volta ao mundo de barco, sozinho. Hoje tem perto de 60 anos, na altura tinha 50. Da segunda vez, passou pelo Cabo Horn na América do Sul, de Leste para Oeste, que é das experiências mais extremas que se pode viver no mar. O período máximo que esteve sozinho, sem passar por terra, foram 32 dias. “A Odisseia de um homem chamado Genuíno” foi o nome que dei a um dos capítulos, onde perguntei como foram esses dias a velejar sozinho. Ele contou-me que tinha o propósito de chegar numa determinada data ao Porto do Pico, dia de Nossa Senhora, e que foi isso que o norteou. Disse-me que não pensava na solidão quando estava no mar – o objetivo era cumprir o plano, aquilo a que se propôs fazer. Partilhou duas situações mais complicadas, e que nessas alturas o importante é não perder o controlo.
Não é só pôr em prática todos os conhecimentos que temos para que o barco não se afunde, é pôr ali tudo o que está dentro de nós, toda a força para nos focarmos naquele objetivo em termos de sobrevivência. Disse-me que “os meus pensamentos nunca me abandonaram” – o que é extraordinário! Os nossos pensamentos estão cá e a sensação de nos abandonarem é inconcebível. Só num estado psicótico é que não há pensamentos, como se estivéssemos à beira da loucura.
No seu livro fala sobre a riqueza do mundo interno que nos apoia nos momentos de solidão. Por que nos sentimos sós, mesmo quando estamos acompanhados?
O modelo psicanalítico ajuda a compreender uma determinada perspetiva sobre o mundo interno, que é o conjunto das representações que temos dentro de nós. São as memórias – tudo o que nos aconteceu está gravado cá dentro. Há aspetos mais objetivos e há outros mais afetivos, que tem a ver com as experiências e representações de outras pessoas. A representação que tenho das pessoas que conheço não é um retrato fiel daquilo que as pessoas são, mas é um resultado do que são, a forma como eu as vejo, como as sinto, como me relaciono com os outros. Quando, desde bebés, as pessoas têm uma relação satisfatória e harmoniosa com a Mãe, as experiências com a mãe são prazerosas. Para este bebé, a Mãe é um bom objeto interno. “Objeto” é, talvez, um termo infeliz, que surgiu no tempo do Freud, para se referir à pessoa ou coisa onde investimos o nosso afeto. Determinada pessoa é objeto do meu amor. Quando as experiências são dolorosas ou negativas, estamos perante um mau objeto interno. O nosso mundo interno é, assim, constituído pelos objetos internos e experiências ao longo da vida.
Há pessoas que não conseguiram esta tarefa do desenvolvimento que é guardar dentro de si a representação de outras pessoas. Quem não teve esta capacidade de ganhar a constância dos outros dentro de si, não é capaz de evocar a presença da outra pessoa, e por isso precisa desesperadamente de ter a sua presença física. O que pode ser dramático em algumas pessoas, nomeadamente as que têm perturbação borderline. Outra competência do desenvolvimento, é o sentimento da nossa constância dentro da outra pessoa. Eu gosto de determinada pessoa que está longe, e não tenho de a ter ao meu lado para saber que sou importante. De uma maneira geral, e na maioria das pessoas, podemos relacionar uma pessoa com um mundo interno mais pobre, como tendo tido uma relação de afeto mais pobre com a Mãe. Afetividade é, no fundo, a pessoa sentir desde bebé que é importante e especial para o outro.
Usar a energia interior para algo exterior e essa energia vir desse mundo interno. Quando trabalhamos sozinhos é importante ouvir o nosso instinto?
Quanto melhor uma pessoa se conhecer, mais fácil é estar disponível para ficar consigo própria, sem ter medo das emoções, dos seus medos, das suas indecisões. Sem termos de fugir de nós próprios. Quando não estamos com outras pessoas, recorremos a nós próprios, às memórias, estamos como que acompanhados por outras pessoas. Mas há angústias que se não a conhecermos bem tornam mais difícil fugir desse estado, e de nós próprios. Uma pessoa que aceite que conheça os seus medos e inseguranças, está mais capacitada para fazer companhia a si própria. A intuição é uma sabedoria e consegue-se depois de muito trabalho prévio. Não é um palpite. Ter confiança em si próprio é importante para se voltar para fora, para não se esconder. Não significa que se têm muitas qualidades, mas que a pessoa, predominantemente, aceita-se como é.
Há uma solidão inerente a certas profissões como astronautas, alpinistas, velejadores, mas também líderes que estão à frente das organizações. Há situações em que a riqueza e capacidade de estar só é mais importante. Concorda?
Qualquer profissão que exija trabalho individual e isolado, torna mais propício a que a pessoa se sinta só, e sozinha, o que afeta uns mais que outros. Há as pessoas introvertidas e extrovertidas – as introvertidas precisam de estar mais consigo próprias, do que com os outros, pois é assim que carregam baterias. As extrovertidas, quando estão sozinhas ficam “com a neura”, inquietas, insatisfeitas e precisam de estar com as outras. Por isso, depende da profissão e das características pessoais. Há pessoas que preferem estar sozinhas, pois a solidão é um lugar de onde brota a criatividade.
Quais são as características de base, para alguém que esteja à frente de uma equipa, empresa ou organização?
A primeira ideia que me vem à cabeça é a humildade. Ter conhecimento dos nossos pontos fortes e pontos fracos, e a autenticidade. Mais vale uma pessoa dizer “eu não sei como vamos resolver isto”, “gostava de ouvir uma opinião”, “vou ter de estudar melhor”. Os colaboradores veem assim o seu chefe, o seu líder, como um indivíduo humano.
Apesar de ser importante saber estarmos sós, ninguém é feliz sozinho.
Fomos feitos para estar com as outras pessoas, se não fossem os outros, não seriamos o que somos hoje – como espécie e indivíduos. Ninguém é feliz sozinho, sem dúvida nenhuma. Mesmo o Genuíno! Quando falo da solidão, da importância de a pessoa aprender a estar sozinha, não é que valorize ou ache importante a pessoa estar sozinha. Acho que é sobretudo importante quando não é possível estar com outras pessoas. Predominantemente, sem os outros, não somos felizes, mas nas fases da vida em que não é possível estar com os outros, é importante saber viver bem com algum propósito, bem-estar e satisfação. Não é um remendo ou uma compensação, mas uma alternativa quando não é possível a presença física.
Vivemos mesmo uma “Pandemia da Solidão”?
Os fatores sociais são importantíssimos, e numa sociedade, como a americana, em que há uma cultura excessiva e desumana para o sucesso, as pessoas tornam-se individualistas, à procura do seu próprio sucesso. Além disso, as redes sociais incutem a ilusão de que as pessoas estão mais acompanhadas do que efetivamente estão. Muitos queixaram-se de estar isolados e em confinamento, pois apesar da internet, eletricidade, redes sociais, não tiveram a presença física e o toque.
As sociedades, e os grupos, têm uma capacidade de autorregulação, e haverá uma altura em que depois de mais solidão, as pessoas vão procurar a companhia de outras e vão valorizar a presença física, o contacto e a comunicação. Estamos numa fase, num ciclo, não acho que estejamos num ciclo decadente ou de deterioração, devido à própria natureza humana. Yuval Harari, o autor de “Sapiens”, afirmou que já houve Pandemias piores do que esta, mas a natureza humana não muda – a necessidade de estar com outros há de ser procurada e de se restabelecer.
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