“Viajar não é o histerismo no
colecionismo de países. Para mim, viajar é conhecer bem os países que nos dizem
alguma coisa” – Gonçalo Cadilhe
“Tudo o que me interessa encontra-se
aqui na Terra”, assinala o escritor e viajante Gonçalo Cadilhe na capa do livro
que este 2023 conhece os escaparates perto de duas décadas após a primeira
edição, corria o ano de 2006. Em “A Lua Pode Esperar”, uma edição Clube do
Autor, Gonçalo Cadilhe, nascido na Figueira da Foz em 1968, envereda a sua
escrita num registo tão pessoal quanto sentido ante os muitos territórios que
visita, da Patagónia à Namíbia, da África do Sul à Nova Zelândia. “Viajamos
para descobrir lugares que mexem connosco, para saber que eles existem, para
nos acrescentarmos a eles, para eles se tornarem parte de nós”. Façamos a
viagem à boleia de uma conversa andarilha.
Goçalo
Cadilhe no deserto da Namíbia. Gonçalo Cadilhe
O título de um livro encerra a natureza
dessa mesma obra. No caso vertente deste seu A Lua Pode Esperar,
diz no prefácio à obra tratar-se do “mais feliz de todos os títulos dos meus
livros”. Porquê?
No ano em que o livro foi lançado pela
primeira vez, em 2006, o título parecia bastante óbvio. Na época, era evidente
dizer-se que a Lua tinha de esperar. Alguns anos depois, até já se fala em
fazer turismo na Lua. Mas nem queria ir por esse caminho. O que realmente o
título deixa entender, e isto tornou-se bastante acutilante nos últimos tempos,
com muita gente a viajar, é a banalização da viagem e uma certa obsessão em
colecionar carimbos no passaporte, em dizer-se que se esteve em todos os países
do mundo. Há aí uma glória e uma vaidade. O título também é, efetivamente, uma
declaração de princípios quanto a esse tipo de viagem. Para mim, viajar não é o
histerismo no colecionismo de países. Para mim, viajar é conhecer bem aqueles
países que nos dizem alguma coisa e, nesse aspeto, todos os outros podem
esperar. E a Lua também.
Dai ser razão para voltar ao livro após
quase duas décadas e aos destinos de viagens que lhe dizem muito.
O título ganha hoje muito mais
significado do que há quase duas décadas. Entretanto, claro que a maneira de
viajar pelo mundo mudou, eu também mudei e o leitor mais atento perceberá essa
alteração na minha forma de abordar a viagem.
No
Nepal. Gonçalo Cadilhe
O Gonçalo escreve na nota de abertura do
seu livro que recolhe textos da fase inicial da sua carreira “quando a ênfase
da escrita recaía mais na potência objetiva dos lugares e menos no efeito
subjetivo que eles exerciam sobre o autor”. Qual é o alcance destas suas
palavras?
Essas palavras subentendem duas formas
de o autor se relacionar com os leitores e também duas formas de entender a
literatura de viagens. Iniciei a minha carreira numa perspetiva mais
informativa. Escrevi ao longo de dez anos para revistas e jornais, com o
cuidado de ir ao encontro do meio onde publicava. Nesse processo, lentamente,
também percebi ao longo do tempo o ‘pulso’ do leitor. Aos poucos, comecei a
entrar na segunda forma de entender a literatura de viagens, mais subjetiva,
emocional, ao encontro dos pensamentos do viajante escritor. Este livro, no
fundo, faz como nenhum outro dos meus livros essa ponte, apresenta essas duas
visões da utilidade da literatura de viagens.
Esta segunda forma de olhar para a
viagem, mais pessoal, é aquela em também mais se expõe. Não tem meramente uma
função descritiva, tem também uma função de interpretação e de aproximação e de
entrega. Concorda?
Sim, de fragilidade. A verdade é que
hoje, com a banalização dos blogues, das publicações no Instagram, no TikTok e
também da necessidade de as pessoas terem
likes, reparo que os
agentes que partilham, que publicam coisas sobre viagens, de uma forma talvez
um pouco leviana, expõem-se. Não sei se tudo isto não me tem feito querer
ultimamente regressar a esses primórdios, em que a informação objetiva e fiável
estruturava o meu trabalho. Atualmente, com tantas
fake news,
sinto-me outra vez mais inclinado a dar menos de mim e a dar acerca do lugar em
si.
No
Peru, em Machu Picchu. Gonçalo Cadilhe
Parece-lhe que nessas publicações a que
se refere há uma certa urgência em passar a imagem de um mundo impoluto, muitas
vezes arredado da realidade?
Definitivamente há todo um glamour que
é absolutamente construído e que parece sê-lo para servir a emoção de quem
publica. Algo como: “Vejam como isto é bonito e como eu estou feliz por estar
aqui”. Bem visto, é tudo uma realidade muito básica.
Um bocadinho de gossip por dia, nem sabe o bem que lhe
fazia.
Subscreva a newsletter do SAPO
Lifestyle.
Subscrever Já subscrevi
Denomina este seu livro um “catálogo”.
Trata-se de um catálogo do seu caminho enquanto escritor de viagens?
Sim, é um catálogo não de destinos, não
de carimbos no passaporte, antes um catálogo sobre a forma como fui entendendo
e publicando sobre viagens ao longo de três décadas. Ali está o Gonçalo mais
objetivo e concentrado em servir o leitor com informação interessante sobre um
destino. Mas também está um Gonçalo mais confidencial, a elaborar sobre
assuntos que, à partida, são bastante banais, mas que através da escrita e do
lugar onde foram vividos ganham algum significado de literatura de viagens. Se
quisermos ver um Gonçalo mais divertido com situações anedóticas, também ali
está. É o catálogo de como tenho escrito sobre viagens. Sem grande pretensão, é
também um catálogo daquilo que se pode encontrar nos diversos estilos da
literatura de viagens. Do mais confessional ao mais objetivo.
Cinque Terre, em Itália. Gonçalo Cadilhe
“A vertigem do vazio habita dentro de
nós”, escreve o Gonçalo no capítulo que dedica à Patagónia. De certa forma vê
este lugar como um ponto “que permite acreditar no fim do planeta”. É sedutora
esta hipótese de precipício que nos oferecem os lugares ermos?
Somos produtos do meio onde crescemos,
da nossa cultura, daquilo com que nos identificamos. Sendo português, ao
percorrer uma estrada entre duas cidades, constato que de 10 em 10 ou de 15 em
15 quilómetros, aparece uma nova povoação. Ou seja, a minha noção de planeta é
a de um território densamente povoado, com muita história, com o peso da
tradição, com esta demografia exacerbada que é também característica de quase
todos os países europeus. Se calhar para um aborígene australiano ou para um
bosquímano da Namíbia, esta necessidade que eu afirmo de chegar ao fim do
mundo, não lhe dirá absolutamente nada. Logo, a frase que transcreveu é
entendível por qualquer português. No livro incluí, por exemplo, a Patagónia, a
Namíbia, a Tasmânia, lugares que ali reencontro, nas páginas da obra, e que
repetem emoções. Claro que tudo isso me seduz.
Entre comboios, aviões e automóveis, o
Gonçalo prefere caminhar. “Quem dera não viajar de nenhuma outra maneira”, como
nos diz. O que lhe oferece caminhar que não lhe dá outra qualquer forma de
locomoção?
Oferece
duas dimensões que não se encontram em nenhum outro meio de locomoção. A
primeira é a proximidade, a lentidão e, portanto, a capacidade de olhar,
absorver pormenores. Caminhar é um processo muito lento, lento demais, há que o
entregar a lugares que estão densamente carregados de emoções. Acabei de
regressar há pouco tempo do norte do México. Ali retornei a um lugar que
aparece citado no livro, o grande desfiladeiro da Barranca del Cobre [estado
mexicano de Chihuahua]. Desta vez não visitei o lugar para caminhar, não era
essa a intenção. Este grande desfiladeiro é um exemplo de territórios
densamente carregados de emoções. Não podemos atravessá-lo em meia hora de
carro. Ali caminhamos durante dias e sentimos que estamos, efetivamente, lá
para retirarmos o máximo do lugar. Por exemplo, no meu livro África
Acima faço a descrição de um trekking de seis dias no
grande desfiladeiro da Namíbia.
Um outro aspeto associado à caminhada
prende-se com a introspeção. E para isso basta que caminhemos na marginal de
uma cidade portuguesa, frente ao mar ou por um desses bosques onde encontramos
cada vez mais trilhos. Sentimos de imediato o efeito de que o mundo se afastou
de nós para nos deixar estar um pouco em paz, com o nosso próprio tempo.
São essas duas dimensões da caminhada
que são extraordinárias, que são irrepetíveis se queremos, efetivamente,
‘perder’ algum do tempo que nos é dedicado nesta vida, neste planeta, a
conhecer o que de mais bonito nele existe.
No seu livro fala precisamente de uma
caminhada que o tocou em particular na Patagónia.
Sim. Essa caminhada deu-se em 2005 o que
me fez ter a certeza de que queria viver a minha vida assim. Depois disso houve
outras caminhadas. Quem sabe se um dia não reúno num único livro os textos
sobre caminhadas, sobre trekking, em lugares extraordinários como
esse na Patagónia.
Ao falar da Namíbia, país onde regressou
amiúde , descreve-o como “a mais surpreendente das nações africanas”. Diz mesmo
que ali se avista o lado oculto da Lua. Porquê?
Regresso muitas vezes à Namíbia com o
trabalho de condução de grupos. É um destino muito concorrido. Este ano ali fui
três vezes e quatro vezes no ano passado. São viagens rumo ao que de melhor tem
a Namíbia. O que este local tem de surpreendente, e que não me canso de repetir
a quem ali chega, é o facto de a Namíbia não ser um país africano. Passo a
explicar: é, de facto, um dos poucos lugares que não pertence a este mundo e
onde, sobretudo, podemos viajar em perfeita segurança. Nunca estive na Líbia, mas
sei que no sul do país, assim como na Argélia, há lugares extraordinários. Mas,
neste momento, quem é que vai para a Líbia? Há uma guerra civil e também o
fundamentalismo islâmico. A Namíbia permite-nos trabalhar e viver as emoções
sem aquela apreensão de risco que funciona para algumas pessoas.
Dolomitas - uma cadeia montanhosa dos Alpes orientais
no norte de Itália. Gonçalo Cadilhe
Quando escreve sobre Machu Picchu
traz-nos o relato de uma criança de que não sabe o nome, a quem chama Ernesto.
Vê-o como antítese das crianças entediadas da sociedade ocidental: “Às vezes
penso nele, por oposição de ideias. Quando vejo no centro comercial ao domingo
à tarde mais um miúdo atafulhado de tecnologias e de calorias, mais um eterno
imaturo já consumido pelo tédio”. Chamou um fenómeno a esta criança. O que
representou para si este miúdo?
Sobre o autor
Gonçalo Cadilhe nasceu na Figueira da
Foz em 1968. Licenciou-se em Gestão de Empresas na Universidade Católica do
Porto. Durante os anos da Universidade frequentou também a Escola de Jazz do
Porto. Depois de uma breve passagem pelo mundo da Gestão de Empresas, em Abril
de 1993 começou a viajar e a escrever sobre viagens de forma profissional.
A partir de 1996 dedicou-se
exclusivamente ao jornalismo de viagens para escrever ao longo destes anos,
entre outros meios, na Grande Reportagem, Independente e
semanário Expresso. Atualmente, escreve crónicas regulares no
suplemento da Visão “Vida e Viagens” e na SurfPortugal.
Em 2003-04 deu uma volta ao mundo sem aviões, em 2007
outra seguindo a rota de Fernão de Magalhães e, em 2008, outra ainda para
celebrar a sua entrada nos "enta", seguindo as suas ondas de sonho.
Tem dez livros publicados e assinou três documentários de viagens para a RTP2.
Organiza e acompanha mini-tours pelo globo em colaboração com a agência Pinto
Lopes Viagens.
Aqui há toda uma elaboração literária,
algo que faço com frequência, ou seja, o de condensar num único momento ou numa
única pessoa toda uma experiência de um país. Por exemplo, aqui, no caso do
Ernesto, não foi apenas a visão da criança, mas uma forma de retratar todas as
dificuldades económicas e toda a crise social do Peru e de tantos outros países
da América Latina com graves problemas de governação e de corrupção, ou porque
a génese da própria nação resulta de um parto sangrento entre conquistadores e
colonizados. São sociedades que não funcionam como um todo, são sociedades
muito castigadas. Recordo-me que esse texto nasce na sequência de uma longa
viagem pela América do Sul e, portanto, eu estava com todas estas questões que
referi muito à flor da pele. Quando escrevi o texto depositei no pequeno
Ernesto toda uma mágoa que sentia pelas crianças desses países que eu tinha
atravessado.
“Que motivos levam alguém a repetir a
experiência de navegar pelo Amazonas a bordo de balsas fétidas, desconjuntadas,
lentas e sobrelotadas?” Devolvo-lhe a pergunta: o que o leva a voltar àquele
lugar?
Provavelmente também não tenho resposta
a essa pergunta. Julgo que se trata de uma pulsão. Há tantas formas de viajar.
No meu caso, sempre privilegiei esta ideia de viajar. A primeira vez que li uma
síntese desta ideia de viagem foi através da francesa Marguerite Yourcenar, num
livro de viagens desta autora. Afirma Yourcenar que viajar significa perceber
como vivem as pessoas do país que se visita. Claro que não recuso conhecer os
lugares belos, os monumentos, as cidades. Mas, para mim, também é muito
importante perceber o que é que significa viver nesses países. Da mesma maneira
que o pequenino Ernesto também me dá uma forma de tentar perceber ou descrever
a realidade daquelas crianças e, portanto, estes 30 anos de viagens têm sido um
catálogo de situações como a que refere no Amazonas, em que eu opto por viajar
não por aquilo que o destino possa ter para me oferecer, mas sim pela
experiência humana proporcionada.
Vulcão Bromo na Indonésia. Gonçalo Cadilhe
Há pouco quando falava de Yourcenar
referia-se ao livro As Memórias de Adriano? Refere essa obra neste
seu livro A Lua Pode Esperar…
Não. Por coincidência, acrescentei a
referência ao livro As Memórias de Adriano nesta nova edição
do meu livro. A Yourcenar tem um livro onde reúne os seus textos de viagens.
Claro que no presente estaria um pouco datado. Para a autora algumas viagens
extraordinárias do seu tempo são hoje absolutamente banais. O livro a que me
refiro dá pelo nome de Uma Volta Pela Prisão, o que é um título
extraordinário para um livro de viagens. Encara o planeta Terra como uma
prisão. Quando olhamos para as estrelas percebemos perfeitamente o que a
escritora quis dizer.
No seu livro também fala do Paraíso, ou
melhor de um lugar que nos leva a adiar a ideia de Paraíso. Para si esse lugar
é Zanzibar. Um lugar aparentemente sereno. O que guarda desse lugar?
Há aí uma declaração de inquietude, como
aquela palavra que os italianos usam quando se ferem a sentir-se fora de um
lugar, o "spaesamento", o de não conseguir encontrar referências. Não
se trata de um choque cultural, é diferente disso, é mesmo sentir que há ali
qualquer coisa que não funciona. Foi a ideia que trouxe de Zanzibar. Estava a
fazer uma longa viagem por África e tive a oportunidade de conhecer Zanzibar
num voo barato a partir da capital da Tanzânia, a então Dar es Salaam. Fui a
Zanzibar para tomar contacto com a vertente histórica. Essa história, tal como
a descrevo no livro, é uma narrativa de violência e de crueldade e de relações
humanas muito tensas. E isso continua tudo lá. Talvez isso não nos causasse
qualquer impressão há 60 anos, o de sentirmos toda essa tensão entre as várias
etnias e culturas que lá vivem. Hoje, Zanzibar é-nos vendido pelos operadores
turísticos como o “Paraíso na Terra”, um destino de férias durante o inverno
europeu. Por isso, quis abordar o tema para encontrar o paradoxo entre aquilo que
eu senti que, penso não andará muito longe da realidade, e a imagem que os
catálogos, as revistas e a publicidade nos passam.
créditos: Clube do Autor Editora
Ao referir-se a Myanmar, a antiga
Birmânia, olha para os pequenos rituais do quotidiano e vê-lhes a essência
daquilo que nos separa daquela realidade. Quer dar-nos alguns exemplos?
Não há muitos destinos neste mundo
globalizado em que faça sentido esse exercício que refere. Viajamos cada vez
mais para encontrar rituais quotidianos semelhantes aos que temos em casa.
Myanmar é ainda um dos poucos países que ficou de tal forma isolado e proibido
de acompanhar as tendências globais que, realmente valida esta abordagem. É um
país muito pobre, embora com uma riqueza cultural extraordinária. Tem como
vizinha a Tailândia, um dos países mais turísticos do mundo. E, de repente,
chegamos a Myanmar e encontramos um país que não está parado no tempo, está num
outro tempo. Por isso fui várias vezes a Myanmar nos últimos anos.
Diz sentir-se “meteoropático” na África
do Sul: “o meu humor salta como um barómetro com as variações das condições
atmosféricas”. Porquê?
O texto a que se refere trata não da
África do Sul como um todo, mas antes aquele ‘pedacinho’ que, ao olharmos para
o mapa, é um daqueles fins do mundo em que só temos oceano, oceano, oceano.
Para além de toda a história, de toda a riqueza cultural que esse território
guarda, senti muito essa característica, a de um continente que termina numa
língua de terra, o Cabo da Boa Esperança. Um local que, obviamente, está muito
mais exposto, é muito mais ‘abanado’ pela chegada das perturbações
atmosféricas. Em Portugal temos uma situação muito estável em termos de clima.
Vivemos numa latitude e numa localização geográfica onde os estados do tempo
são muito previsíveis. Há outras geografias que têm um clima à merce de
inúmeros fatores. Senti isso em vários locais do mundo. A cidade do Cabo, está
ali como uma lança no oceano Antártico, face a essa grande imensidão. A
Patagónia também é assim. Há uma passagem no livro em que refiro que os alemães
que quiseram subir ao Monte Fitz Roy previram um mês de escalada porque, mesmo
no verão, a qualquer momento, o tempo muda. Nesse sentido, voltando agora à
África do Sul, reparo que estou muito sensível a essas alterações bruscas das
condições atmosféricas, algo que não me acontece em Portugal.
Desfiladeiro Barranco del Cobre, no México. Gonçalo
Cadilhe
Usa uma expressão deliciosa quando se
refere aos livros de Steinbeck. Diz que estes livros “em caso de hipoglicemia,
ajudam o turista europeu a reconciliar‑se com a América”. Porquê?
A América tem um papel importante na
forma como é vista pelo europeu e, sobretudo, para o europeu que tenha noção e
memória da importância daquele país na Segunda Guerra Mundial e também na
criação daquilo a que chamo o século americano. Quando vamos hoje à América,
como simples turistas, temos alguma dificuldade em testemunhar naquele
quotidiano o que referi. Penso que é necessário construir essa nossa perceção
para podermos desfrutar da América como o lugar importante que é. John
Steinbeck é um dos romancistas que nos deu uma ideia da América. Por exemplo, o
New Deal de Roosevelt, com a intenção de reformar a economia, foi também muito
influenciado pela publicação do livro As Vinhas da Ira. Steinbeck
não foi apenas um lírico que escreveu sobre o bem e o mal, ele contribuiu para
que a própria América tivesse uma perceção das suas injustiças e as melhorasse.
Não é por acaso que tenho uma admiração pela figura do Steinbeck.
Que Gonçalo era aquele que escreveu as
primeiras crónicas deste livro em 1995 e que homem é hoje?
Sinto que não tenho de me envergonhar do percurso que
fiz. Noto que há uma evolução dentro de uma certa coerência. Uma evolução
lógica e também um certo rigor, uma certa honestidade intelectual para escrever
coisas em 1995 que, 20 anos depois, eu ainda considero bem escritas.